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domingo, 11 de setembro de 2011

A SEDE (Crônica)

A SEDE

                                   Rangel Alves da Costa*


Já entardecer, com o vento mais forte passando diante da janela entreaberta, nem quis ir até ali para apreciar paisagem tão bela lá embaixo e num momento tão sublime, ainda que cenário propício aos entristecimentos pelas dores e saudades.
Acendeu um fósforo e fez chama na lamparina, arrastou a mesinha para mais próxima da janela, jogou a velha toalha rendada de lado e por cima da madeira já corroída pelas traças e pelo tempo colocou três litros: um de aguardente, outro de refrigerante e mais um de veneno.
Tomou uma dose do primeiro litro, acendeu um cigarro e ficou imaginando o quanto é bom de vez em quando tomar todas para tentar jogar debaixo do tapete alguns dos muitos dissabores da vida. Por vezes achava que a aguardente tinha o poder de ser o escudo do homem quando precisava enxergar-se sem medo de se reconhecer.
Pensou em tomar outra dose em seguida, porém havia se comprometido a experimentar os mesmos pensamentos advindos com a aguardente após tomar um pouco de refrigerante. Será que o refrigerante, na sua pureza natural, no seu intuito apenas de matar a sede, tinha o poder de manter a chama nascida após o álcool ingerido?
Se nesse experimentar uma e outra, beber a cachaça e também o refrigerante, ao invés de ir ora aumentando ora diminuindo sua tristeza, sua angústia, sua saudade, não desse nenhum resultado pretendido, que seria apenas levemente padecer sem desesperar, então restaria a opção do outro litro: o veneno.
Por diversas vezes já havia sentido vontade de experimentar, de beber veneno. Escreveria uma longa carta de despedida, diria tudo sobre os seus sofrimentos e desilusões, contaria tudo sobre suas mágoas e tristezas, e depois encheria um copo de veneno e viraria tudo de uma vez, do mesmo jeito que fazia com o conhaque de vez em quando.
E por vezes também pensou que solução mais dramática, inteligentemente trágica e opcionalmente coerente com o momento seria tomar um gole, uma dose, um copo cheio de veneno. O mais forte, cianureto ou cicutina, conscientemente despejado no copo e sorvido como se fosse fato normal numa vida anormal.
Primeiro o cheiro bom, o cheiro forte e ácido do veneno, depois a aproximação da boca e a consciência que deveria ser logo bebido, sem mais tempo para pensar em nada, nela, no que ela fez ou não fez, no que ela foi ou não foi, no que ela não seria mais. A borda do copo já estaria roçando o lábio e não poderia voltar, a boca pedia, o instinto gritava, a garganta sedenta queria ser molhada. A morte esperava.
Mais tarde talvez, dali a pouco talvez fosse assim mesmo. Ora, mas que droga de vida, que lástima, que tão cruel é essa existência, esse viver pisando em pregos, em ponta de vidros, andando sobre brasas, escorregando à beira do abismo. Mas agora não, ainda não, pois talvez ainda houvesse tempo para adiar um pouco a morte, para morrer mais tarde.
Quem sabe tomar outra dose para pensar melhor sobre tudo isso, sobre essa possibilidade de se findar a vida naquele mesmo entardecer quase noite? Então nem lembrou mais de colocar apenas uma dose, encheu o copo de aguardente e bebeu como se fosse água. Desceu quente, mas desceu suave, confortante, reativando a mente para outros pensamentos.
Com o álcool já fazendo efeito, colocou o refrigerante mais próximo de si e ficou se perguntando por que as pessoas tomavam aquela água açucarada se tudo na vida era amargo, ardente, travoso e repugnante. Querer iludir o paladar com aquele líquido doce era mesmo que tentar enganar a sede de beber fogo, engolir uma fogueira inteira, abrir a boca diante da boca de um vulcão vomitando lava.
Jogou o litro com o refrigerante pela janela que o vidro talvez nem restasse como restos lá embaixo. E agora que só restavam dois, resolveu tomar mais um pouco de aguardente para decidir melhor o que fazer com aqueles dois litros dali em diante, se derramaria sua dor esvaziando o de aguardente ou passaria de vez para o outro líquido, o veneno.
Mas ainda continuava indeciso demais. E tomou mais e mais aguardente, até adormecer com a mão estirada em direção ao veneno. Já havia decidido ingeri-lo, mas adormeceu pesadamente antes de concretizar seu intento.
 No outro dia acordou assustado, porém mais feliz porque na loucura e no desespero não havia tomado o veneno. Mas estava com tanta sede na ressaca que resolveu pular a janela em busca da garrafa de refrigerante. E, com a boca aberta, caiu do oitavo andar.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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