SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 2 de setembro de 2011

TEMPOS DIFÍCEIS (Crônica)

TEMPOS DIFÍCEIS

                                          Rangel Alves da Costa*


Diante de uma nova realidade, de um mundo novo que precisa tomar feição e rumo próprios, nunca é fácil para o forasteiro se firmar no lugar. Tudo existe ao redor, tudo é muito vasto e promissor, mas apenas diante do olhar que supõe sempre o melhor sem conhecer o que realmente existe.
Não era diferente naqueles sertões recentemente desbravados, quando a imensidão da caatinga se viu aberta em clarões e rústicas moradias começaram a se espalhar nas regiões mais altas. Nas altitudes mais elevadas por causa do clima, numa tentativa que o vento norte chegasse sempre ao entardecer para espantar o insuportável calor de verão e outras épocas do ano.
Um casebre, dois, um terreninho, uma pequena fazenda. Mais outra construção adiante noutro pedaço de terra já apossado, ali pertinho um curral, um cercado, e mais tarde outros forasteiros pedindo licença para se assentar, e num repente o lugarejo já era lugar de passagem de comboieiros, de viajantes, de pessoas que se maravilhavam com o lugarejo e arrumavam um cantinho para ficar.
Falar em maravilhamento nuns ermos iguais aqueles só mesmo pelos encantamentos próprios que o sertão possui e que muitas vezes confundia o novo habitante. Verdade é que a natureza, com suas características próprias, era realmente encantadora. Mesmo com a sequidão se espalhando de cima a baixo, as plantas, os bichos, os mistérios, os desconhecidos, as lendas, tudo isso embelezava demais aquela pacata vida.
Tanta seca e tanto sol, tanto mato e tanto bicho, tanto desconhecido e tanto perigo por todo lugar, nada disso ressoava mais forte do que a singeleza da vida, a alegria de se estender uma rede debaixo de um pé de pau e não querer pensar mais em nada, o acordar com o galo cantando e enxergar adiante o paraíso ao amanhecer: a passarada, a natureza se contentando com o seu marrom, os bichos correndo em busca de qualquer água.
Ao entardecer a mesma coisa, com o seu frescor chamando a noite para a cantoria embaixo do luar. Ai compadre, ai comadre, traga outro verso que quero alegrar coração, lembrar de alguém, dizer que não parta não! Traga uma cachaça boa que quero triscar os beiços, fumar um cigarro de palha porque hoje não tenho boca pra beijar!
No restante, por mais que a afeição pelo lugar afastasse toda dificuldade, a vida daqueles sertanejos naqueles primeiros momentos era das mais difíceis. E os tempos eram difíceis porque tudo dependia do querer da natureza. E a natureza não ia mudar porque ali local escolhido para conhecer a capacidade do homem de viver no inóspito e ainda assim se fartar do quase nada que a terra dava.
Na terra, estava a vida daquele povo civilizador, daqueles desbravadores do sertão. Mas fato é que na terra também estavam a dor e o sofrimento, pois o alimento, a água, o andar, o construir, tudo estava assentado na sua disposição para conceder ou não. E o que se via era sempre a terra seca, rachando por todo canto, os tanques, riachos e barreiros sem um pingo d’água, as sementes jogadas na terra servindo como comida de passarinho, a poeira quente tomando conta das estradas.
Para sobreviver em determinados momentos o homem tinha que alçar mão do preá, da nambu, da codorna, do teiú e outros bichos do mato. Matar um veado significava fartura pra muitos dias. Contudo, somente a carne da caça era muito pouco pra um povo acostumado com a farinha de mandioca, o milho, o feijão, o arroz. E para suprir a falta de outros alimentos se recorria às batatas da terra, aos brotos das plantas, aos cactos sem espinhos e aos frutos que no sertão sempre dão sem precisar de chuva, como o umbu.
Sem contar com facilidades em nada, a comida era preparada em panela de barro, fervida no fogão a lenha de fundo de quintal, com o braseiro servindo para estender as caças pequenas. Prato de alumínio, de estanho ou plástico, mas no mais das vezes uma cuia servindo tanto para a comida como para beber água. E esta, sempre mais preciosa que o ouro, tomando frieza no pote de barro, na moringa ou quartinha, como se chama por lá.
E quanta rede e quanta esteira espalhada por todo canto. Cama de vara, de estrado de ripa, tendo por cima, ou quando a casa era luxuosa, um colchão fininho enchido com capim macio. Muitas vezes o dono do colchão vivia eternamente doente sem saber que o pó formado pelo capim retorcido demais era veneno puro para as vias respiratórias.
Já os remédios eram os mais simples, porém muito mais eficazes do que todos os outros que surgiram depois. Açafrão, boldo, erva-cidreira, hortelã, macela, malva, mastruço, quebra-facão, quebra-pedra, velame e outros, fossem na raiz, no chá, na infusão, na maceração, tudo era na medida pra doença surgida, até mesmo aquelas levadas pelos mais recentes forasteiros.
Mas quando mesmo assim os remédios de quintal e mato não surtiam efeito pelo avançado ou medonhice da doença e a pessoa morria, então se cavava sete palmos de terra num chão mais afastado, e lá deitava o sertanejo no seu sonho de eternidade. Dois pedaços de paus formando uma rústica cruz assinalava uma saudade que doía muito mais ainda naqueles tempos idos.
E doía mais profundamente porque tudo ali era uma verdadeira e imensa família, a família sertaneja. E não como se vê hoje, apenas uma relação de parentesco tão fragilizada que o estranho pode se tornar muito mais importante do que um consangüíneo.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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