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sexta-feira, 16 de setembro de 2011

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 32 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 32

                                         Rangel Alves da Costa*


O nervosismo causado pelo questionamento de Carmen foi de um impacto retumbante. Dr. Auto apanhou o celular que havia caído, tentou ouvir novamente a voz da ex-secretária, mas a ligação havia sido interrompida. Mas sabia que ela retornaria a ligação e não duraria muito.
Esse era o tempo que tinha pra pensar no que responder. Bem poderia dizer que Dona Leontina não havia aparecido por ali naquela manhã e pronto, ninguém poderia contestá-lo, pois somente a atual mocinha que estava servindo provisoriamente como secretária sabia do ocorrido. Mas essa não era a melhor ideia, também sabia. Se mais tarde descobrissem que ela havia morrido ali, na sua sala, seria também o seu fim. E pelo que conhecia da inteligência de Carmen, certamente ela iria procurar investigar cada passo dado pela mulher. Quando descobrisse a verdade seria ainda pior.
Pensou e pensou, refletiu e imaginou, e por fim decidiu que falaria a verdade. Para o bem ou para o mal falaria a verdade. Porém logo reconheceu que nessa opção haveria também um grave inconveniente, cujo desenlace poderia até se transformar em caso de polícia. Eis que contando que a mulher havia tido um ataque fulminante assim que ficou sabendo da sentença condenatória em desfavor do seu filho, também teria que dizer que fim havia dado ao corpo. Aí é que residia todo o problema.
Ora, se Dona Leontina havia morrido ali no escritório, logicamente que o próprio advogado deveria dar urgente conhecimento aos familiares da defunta, deveria dar conhecimento também ao corpo de bombeiros e até à polícia, de modo que não ficasse pairando qualquer dúvida sobre a causa da morte e a existência de um corpo sem vida ali. O que jamais ele poderia fazer foi o que fez, mandando recolher o corpo sem o conhecimento das autoridades competentes, sem a feitura de nenhum laudo, somente destinando-a a qualquer vala imunda e como indigente.
Ainda que soubesse que ela só tinha o filho preso como parente ali na cidade, ainda que soubesse de sua condição de extrema pobreza, e talvez por tudo isso, deveria ter respeitado mais aquele ser humano desvalido de quase tudo. O problema é que a sua vida profissional, incluindo praticamente o que se passava ali no escritório, estava atrelada ao jogo sujo que havia se metido.
E o recolhimento do corpo às escondidas, sem dar conhecimento a ninguém, fazia parte desse nojento contexto. Assim, com o sumiço da mulher estavam livres que mais tarde ela descobrisse a verdade e fosse denunciar à imprensa e aos órgãos ditos competentes. E se fizesse isso, a um só tempo, estaria manchando a imagem dele, do deputado, do juiz, do promotor e do empresário agiota, pai do verdadeiro Josué. Seria um lamaçal putrefato de não acabar mais.
Tinha a máxima certeza, contudo, que se não falasse a verdade a Carmen seria pior. Não sabia como, mas algo lhe soprava que aquela linda moça era muito mais perigosa do que qualquer um poderia imaginar, que ela também sabia muito mais coisas do que igualmente ele e o deputado pressupunham. Nesses desvãos e desvarios, certezas e incertezas, eis que o telefone toca novamente. Logo reconheceu o mesmo número da última chamada. Era ela.
“Desculpe Dr. Auto, mas acho que houve algum problema na última ligação. Mas como pretendo ser rápida vou repetir a pergunta feita anteriormente. Aquela sua cliente, Dona Leontina, mãe de Jozué, esteve aí no escritório hoje pela manhã?”.
E o advogado procurou não vacilar: “Esteve sim, Carmen, esteve sim. Mas infelizmente tenho de lhe repassar uma notícia que não é das mais agradáveis, considerando-se que você já conhecia a pobre mulher. O fato é que estávamos aqui na sala e eu repassando as explicações sobre possíveis motivos de a sentença referente ao filho dela, o Jozué, não ter saído hoje como prometido. E nesse momento a pobre coitada passou mal, acho que uma espécie de ataque cardíaco, quis falar alguma coisa e caiu da cadeira, já morta...”.
Do outro lado Carmen colocava a mão na boca para conter o desespero, o grito, o terror advindo com a notícia. Segurou-se como pôde e continuou ouvindo. E o advogado prosseguiu:
“Então, Carmen, como eu sabia que o único familiar dela aqui na cidade é o filho preso e nesse caso ele não ia poder fazer nada, então providencie a remoção do corpo e também o seu enterro, mas tudo na maior dignidade e respeito ao ser humano...”.
“Mas onde o corpo dela está, pra onde você mandou o corpo dela, Dr. Auto?”. E o advogado voltou a ficar nervoso, a se preocupar com o que deveria responder, mas voltou ao seu hábito normal para se livrar de situações desse tipo, que era mentindo.
“Não lembro bem o nome, pois é um velatório novo, uma casa de defuntos recentemente inaugurada. Antes disso chamei a perícia médica, o pessoal do corpo de bombeiros e da polícia, mandei elaborar um laudo sobre a causa da morte e somente depois é que o pessoal do velatório veio buscar o corpo dela. Infelizmente não vou poder ir até lá velar o corpo da tão humilde e prestimosa mulher, mas providenciei tudo para que seja enterrada com o máximo de respeito humano. Afinal de contas ela merecia, não é Carmen? Tão sofredora, tão angustiada com o problema do filho, e infelizmente não vai mais poder estar presente para ter o prazer da sua absolvição, do retorno dele à casa materna...”.
E nesse momento Carmen explodiu do outro lado:
“Seu cachorro, seu mentiroso, salafrário filho da puta. Você não vale um conto, Dr. Auto, é nojento, indigno da profissão que exerce, corrupto de maior marca, uma verdadeira imundície em pessoa. Você acha que vai poder enganar todo mundo o tempo todo, é? Você acha que as pessoas, por serem pobres, humildes demais, sem dinheiro para lhe passar no focinho, devem sempre ser tratadas dessa forma, na base da mentira, do jogo sujo, da covardia. Até quando você ia continuar mentindo pra elas, Dr. Auto, até quando? Você já sabia que os dois, tanto o Jozué como o Paulo, já estavam condenados há muito tempo. E sabia porque você quis que isso acontecesse, mentiu o tempo todo que estava fazendo a defesa deles, preocupado com a libertação deles, quando na verdade estava cimentando a condenação, agindo de forma que eles não saíssem daquela prisão nunca mais. Dizendo que estava fazendo a defesa, na verdade o que fez foi praticamente acusar, negligenciar, omitir, deixar fluir prazos, perder oportunidades de peticionar em proveito delas, requerer o que deveria, fazer tudo que o advogado normalmente deve fazer. Mas não, misteriosamente resolveu passar pro outro lado, agir segundo outros interesses. Ainda não sei bem o que está por trás disso tudo, mas vou descobrir, disso pode ter a máxima certeza. E quando souber de tudo, do porque aqueles dois inocentes foram condenados, então será minha vez de abrir a boca, e doa a quem doer. E ainda por cima, seu vagabundo safado, seu cretino nojento, ainda hoje de manhã se sentiu no direito de mentir descaradamente para Dona Glorita e dizer que a sentença ainda não havia saído. E saiu sim, as duas, pois estou com elas aqui em mãos. E foi por isso que Dona Leontina morreu, porque você deu como esperança uma coisa, disse que Jozué poderia ser absolvido, mas com a sentença em mãos veio com essa carinha sonsa dizendo que infelizmente não havia saído nada do que esperava. Mas quem faz aqui não paga em outro lugar não, ouviu bem?”.
E desligou o telefone na cara do advogado, sem dar chance de dizer nada. Também não ouviria nada, pois o telefone foi arremessado na parede com tanta força que se espatifou em mil pedaços.

                                                  continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com


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