SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 17 de setembro de 2011

ASSIM QUE AMANHECER (Crônica)

ASSIM QUE AMANHECER

                                   Rangel Alves da Costa*


Tenho sofrido demais. No meu corpo já vivido, porém nem tanto assim, parece morar um século de padecimentos. E plantei e plantei, semeei o grão da felicidade, espalhei sobre a terra sementes de compartilhamento e amizade, e tudo devastado pelas secas e estiagens do dia a dia. Eu merecia melhor sorte, não duvido porque me conheço. Mas também tenho culpa.
Depois confessarei minha culpa, mas antecipo que me esqueci de ser eu mesmo, escondendo um mundo e uma história escorrendo na veia que eu não deveria esconder, para ser apenas agradável aos olhos do novo, da modernidade, deixando pra trás todos os traços familiares característicos e ser apenas o presente.
E um dia ouvi de alguém que se a gente perde a identidade do coração e dos sentimentos nunca mais pode ser feliz consigo mesmo. E é também por isso que a sorte parece se fazer esquecida, distante daquilo que a gente deseja tanto ter, que é ser autenticamente matuto, autenticamente caipira, autenticamente sertanejo. Autenticamente aquilo que nunca devia deixar de ter orgulho de ser.
Eu fazia tudo ao contrário do que sentia e depois reclamava da sorte, reclamava da vida, reclamava de tudo. Somente hoje descobri que se o mundo não estava sendo aquilo que eu esperava nem por isso vou fechar a janela, trancar a porta, esconder o chinelo debaixo da cama, larga minhas vestes já tão usadas por qualquer lugar.
Não vou apagar a luz nem deixar que o fogo de lenha apague; não vou deixar sem chama minha vela sempre ao lado do velho oratório; não vou procurar o lenço amigo de lágrima nem sentar na cadeira de balanço para o entristecimento infinito, senão para lembrar com emoção que ali sentou uma história.
Já que a sorte não veio, e teimoso e arreliento como sou, vou buscar, vou encontrar essa danada bendita em qualquer lugar. E quando cismo assim não descanso enquanto não cumprir meu desafio, fazer valer meu destino, pois também sou filho de Deus e mereço muito mais do que tenho tido. Mas Ele também disse um dia que faça por onde que Eu te ajudarei.
Pelo que tenho de fazer e tenho tanta pressa, tenho de pedir desculpa ao meu cotidiano do amanhecer se logo cedinho terei que refazer o meu mundo começando por dentro de casa, jogando fora essas quinquilharias de enfeite e de nada e trazendo pro seu lugar aquilo que nunca devia ter sido escondido, encaixotado, esquecido pelos cantos encobertos.
Por isso desculpe-me a mataria que não vai me encontrar passeando por lá, me desculpe a pedra que não vai poder conversar comigo, desculpe o passarinho que não vai poder fazer meu ombro de ninho, desculpe o umbuzeiro se vou deixar os frutos juntando lá, desculpe o riachinho que não vai me ouvir pedindo licença para o banho gelado.
Desculpe-me tudo, mas amanhã cedinho, assim que o galo cantar, só vou ter tempo de procurar minha feição há tanto sumida pelo desconhecimento de mim mesmo. E minha verdadeira feição está escondida em cada móvel antigo, em cada fotografia amarelada, dentro dos baús com suas cartas, lembranças e pedaços de saudades, naquilo que vivia distante estando bem ao meu lado.
Após transformar minha casa, entregá-la novamente à vida na história de todas as vidas, as portas, as janelas e os portões vão estar sempre abertas, quero que as pessoas entrem e vejam pelas paredes as fotografias antigas, os meus parentes distantes sorrindo por entre as molduras envelhecidas e os vidros amarelados; quero que ouçam o badalar do relógio de mais de trinta anos, que era do meu avô e um dia foi do meu pai; quero que vejam quantos móveis antigos eu mantinha escondidos, quantos cristais de outros tempos, originalmente belos e reluzentes.
Assim que amanhecer e começarem as visitas, acaso algum amigo reste nas desamizades, quero que encontre minha velha máquina de escrever bem em cima da encanecida mesa de jacarandá. Mais adiante, em cima de outros móveis, terei o prazer em mostrar o incensório que vivia escondido num canto de quarto; quero que vejam uma lamparina e um candeeiro, mas não como enfeite, mas porque terão uso a partir daquele anoitecer.
Com certeza terei o maior prazer em mostrar os meus dois velhos baús que viviam escondidos lá nos porões do passado, talvez amedrontados demais, relutantes em se fazer revelar tantas histórias de um passado de alegrias e sofrimentos. E também poderão olhar para mim e ver o quanto rejuvenesci trazendo o passado tão belo para a vida nova que quero viver.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com



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