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sábado, 17 de setembro de 2011

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 33 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 33

                                         Rangel Alves da Costa*


Após ouvir todas aquelas verdades de Carmen, a cegueira se abateu completamente sobre o advogado. A cegueira espiritual afeta mais os sentidos do que qualquer outro ofuscamento, pois o indivíduo deixa verdadeiramente de se reconhecer. Era assim que estava o Dr. Auto Valente, se sentindo um verme, uma coisa repugnante, asquerosa, rastejante, à moda kfkaniana.
Correu em direção ao local onde sempre deixava os seus uísques e despejou meio copo goela adentro. Desceu queimando, mas quase sem ser sentido. Mas o respingo de ardência fez avivar a mente e correr para o telefone fixo. Precisava, a qualquer custo, que o nobre parlamentar Serapião Procópio atendesse a chamada. E os dois de quase igual nobreza, ainda que putrefata. E foi atendido.
“Deputado, acabei descobrindo que Carmen sabe muito mais sobre o caso dos rapazes do que a gente imaginava. A velha raposa estava com toda razão, a mulher está se tornando perigosa demais. Ela só pode ter remexido nas cópias dos processos aqui, quem sabe até xerocado tudo, e bastou conversar com aquelas duas, as mães dos condenados, para se inteirar de tudo. Feito cachorro de caça, certamente começou a farejar e agora sabe o que não deveria saber. Sabe que as sentenças já saíram, sabe que eu havia mentido pra mãe de Paulo hoje pela manhã, imagina até a forma como a tal de Leontina morreu aqui. Aquela infeliz escolheu logo aqui pra pegar passagem lá pro quinto dos infernos. Sobre a morte dela tentei me arrumar como pude. Menti, inventei um monte de coisa, mas esperta como é duvido que tenha caído. O medo agora é do que possa vim de lá. Assim que ela tiver conhecimento de tudo, do começo ao fim, tenho certeza que vai abrir nossas covas. O pior, deputado, é que já me vejo com um pé no buraco de muito mais de sete palmos, sem saída, sem ter o que fazer. O que o senhor acha disso tudo, deputado, o que acha que deve ser feito para salvar nossa pele, nossa honra ou que dela ainda exista, nossas vidas no que nos resta nesse mundo?...”.
O deputado ainda não havia falado nada. Continuou em silêncio o tempo todo, porém se contorcendo por dentro com cada palavra ouvida. Estava num estado de pólvora perto do fogo, estava a ponto de explodir. Mas o que se ouviu da boca dele foi muito diferente do que se poderia imaginar diante de uma situação daquelas. Aí é onde morava o perigo, pois cobra matreira quando quer atacar se mostra numa calma de parecer dormindo.
“Meu ilustre advogado, diante do relato só há que fazer uma coisa...”, foi o que disse tranquilamente o homem, causando preocupação no advogado. “Mas o que é essa coisa que se há de fazer?”, perguntou em meio ao atordoamento. E ouviu:
“Parece que você não lê nada, não aprendeu as grandes lições da vida. Esse tal de Maquiavel é fichinha diante daqueles que sou discípulo. Existiu um grande sábio, fervoroso e apaixonado mentor de reis e tiranos, que dizia sempre as seguintes palavras: É da natureza normal das coisas o nascer e o morrer. O sol morre todos os dias; a noite morre todas as madrugadas; as folhas morrem no outono; tudo nasce e morre. Com o ser humano não pode ser diferente, é assim também, nasceu e um dia vai morrer. Mas não é nada demais que apressemos esse destino... Entendeu a inteligência do homem?”.
E o advogado se desesperou: “Já vem com essa história de matar, matar, matar...”. E foi cortado no mesmo instante para ouvir, com a paciência própria dos carrascos:
“Você está ouvindo demais, meu caro advogado. Por acaso você me ouviu pronunciar aqui esse termo que você disse aí? Eu falei em matar, matar, matar? Se ouviu deve tá ficando maluco, endoidou de vez. O que o sábio disse foi que o destino pode ser apressado, antecipado, entendeu? Isto significa, seu pamonha, que essa antecipação não exige que se tenha de matar alguém. Às vezes a má sorte ajuda. Às vezes não precisa nem ser morto para a pessoa morrer logo. De repente, a pessoa tá vivinha da silva e morre sem precisar tomar uma facada ou um tiro. Tudo depende das circunstâncias em que a pessoa morre...”.
O advogado já tinha entendido tudo e não falou mais nada, ainda que o deputado quisesse continuar argumentando. Simplesmente baixou o telefone e foi se servir de mais uma dose. Se o deputado tencionasse fazer isso poderia ser muito pior. E o pai dela, o tal do senhor do agreste, de nome próprio dos coronéis de traições e tocais: Severiano Badaró, e como ficaria essa história se o homem ao menos sonhasse com que pretendiam fazer com sua filha?
E o advogado só faltava enlouquecer enquanto dizia a si mesmo tudo isso. Não receberia mais ninguém naquela tarde, já estava decidido. Ficaria ali pensando no que fazer dali em diante. Ainda bem que não estava com arma nenhuma na gaveta. Seria arriscado demais diante dos fantasmas que povoavam sua mente e insistiam em dizer “Se olhe no espelho se tiver coragem!”
A essa altura Carmen já havia seguido para fazer aquilo que seria uma verdadeira via-crucis, pois iria de velatório a velatório até encontrar alguma notícia sobre o paradeiro da falecida. Tinha quase certeza que não estava em velatório algum, pois dificilmente o advogado gastaria um só tostão com qualquer tipo de cerimonial de despedida para a pobre mulher.
E quem iria velar uma desconhecida, um grão morto naquele mundo de absurdos? Sem nenhum parente na cidade, sem o filho para se despedir, sem os amigos, sem nada. Eis a sorte de muitos. Ainda que na vida olhando por muitos, na morte nem uma só lágrima. Mas certamente não era o caso dela, pois o seu corpo, onde estivesse, estava sendo pranteado pelo olhar invisível da piedade cristã. E o dono desse olhar era poderoso demais diante de todos os olhares do mundo.
E pensando no filho Jozué, logo ficou imaginando como ele estaria agora. Certamente sofrendo, mas sofreria muito mais se soubesse do ocorrido. E também se ela soubesse onde o corpo da desvalida mulher estava ainda se poderia dar um jeito de trazer o filho até o local. Certamente um juiz de bom coração não negaria tal permissão. Mas esse também não seria o caso. Ademais, tudo dependeria de pedido do advogado e diante das circunstancias logicamente que isso nunca iria ser conseguido.
Ela própria não iria falar com o juiz daquela vara criminal, vez que o processo ainda estava sob sua competência, simplesmente pelo fato de que criaria graves problemas para si assim que se deparasse com ele novamente. Certamente o magistrado já sabia que havia sido enganado e das besteiras que falou à pessoa errada. Por enquanto, quanto mais distante melhor. E por tudo isso a mãe seria enterrada sem a presença do filho, sem que ele pudesse sair da prisão por instantes para ir sofrer também no mundo lá fora.
E depois de passar pelo último velatório da cidade sem conseguir um sinal sequer da presença do corpo, foi neste último que ouviu de um funcionário que muitas vezes as pessoas mais pobres e sem parentes eram levadas para o necrotério municipal e de lá enterradas como indigentes, quase num papelão, jogadas numa cova rasa qualquer. Então Carmen não teve mais dúvidas.

                                                    continua...






Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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