SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 9 de setembro de 2011

A VOZ DA SABEDORIA MATUTA (Crônica)

A VOZ DA SABEDORIA MATUTA

                                      Rangel Alves da Costa*


Certa vez num pé de balcão, em meio a talagadas e proseados com velhos vaqueiros e homens da terra, gente de enxada e foice, ouvi uma história que jamais esqueci nem esquecerei. Eis que o fantástico me foi relatado de forma tão realista que até hoje me ponho em meio a dúvidas sobre os fatos ocorridos.
Verdade é que aquela gente, aqueles amigos lá do sertão, conversavam sobre tudo, sobre as profecias da chuva, sobre tempo bom e ruim, sobre o cotidiano chiqueirando animais e desandando a vida pela sobrevivência, sobre a vida sertaneja e suas proezas e dificuldades, mas também sobre mistérios que tudo mundo dizia existir, porém não havia como explicar.
Já tinha ouvido falar de longe, mas naquele dia, com quase todo mundo reunido ali na birosca de aguardente com casca de pau, angico e umburana da boa, acenei e mandei o vendeirim descer o que eles quisessem beber. Sabido como ele só, o homem não só colocou duas apuradas no balcão como espalhou umbu, arrumou uma cuia com perna de preá assado e meia dúzia de caju verdoso. Estava feita a festa.
Quando o compadre antigo talagou sua aguardente aproveitei o trote, o triscar da língua e antes que ele mordesse um umbu perguntei se havia chegado a hora de contar tudo o que sabia sobre o velho que todo mundo ouvia, mas nunca conseguia vê-lo, ao menos de perto nem de frente.
Nem lambou o umbu e virou logo outro dedo pra puxar assunto. Senti sua animação, e disse a mim mesmo que havia chegado a hora daquela história ser enfim revelada. Por sorte, logo outros foram avisando que também iam contar tudo sobre a aparição do velho e suas conversas.
Então, o homem da terra tirou por um instante o chapeu, se benzeu e começou a contar que já tinha ouvido o velho falar mais de dez vezes, mas que em nenhuma pôde enxergar a feição nem saber se era desse mundo ou não. Quando muito, poucos segundos depois que ele dizia o que queria era avistado lá adiante, já virando uma curva na estrada ou entrando no meio do mato e sumindo no mundo.
Mas como a voz aparecia e o que ele dizia, perguntei interessado demais. E o sertanejo relatou que tudo que ele dizia os mais antigos dali já sabiam, pois eram velhas lições e ensinamentos que saíam dos mais experientes para os que estavam agora começando na estrada, só que ele dizia de um jeito que parecia que nunca se tinha ouvido nada igual.
Dizia que o sertão que um dia fez nascer todo mundo, agora precisava que seus filhos tomassem conta dele. Como um idoso que precisa dos cuidados dos parentes para não acabar no abandono, bem assim é o sertão que não tem quem o livre da destruição e faça respeitar sua memória.
Dizia que estão querendo encobrir a cabeça do sertão com outro chapeu que não o de couro e isso é tão absurdo quanto achar que o progresso se faz sem destruir o já existente. E o que sempre existiu no sertão foi sertão, foi sertanejo e gente trabalhadora, luta demais para sobreviver com o que se tem, e não esse vergonhoso pensamento que se tem de mudar o destino porque o sertão é apenas o que se pisa e não que se vive.
Dizia que o sertanejo sabia muito bem que a terra que não é cuidada se encobre de ervas daninhas, que a planta quando não é cuidada não dura muito e morre, que os bichos devem ser chiqueirados para não se perder em meio a mataria desconhecida, que onde tem muita pedra junta é mais fácil ter cobra por debaixo do que um ninho de passarinho. Então por que esse mesmo sertanejo, que tem família, que é pai, não sabe olhar para os seus, suas crias de dentro de casa, senão quando o pior já aconteceu?
Dizia que do mesmo jeito que a água não se mistura com o óleo, não há como o sertanejo jogar num canto seu gibão, sua roupa de couro, sua vestimenta de pano grosso, seu chapeu de couro legítimo, sua sandália e seu roló, seu alforje e seu embornal, seu selim e sua sela, seu carro-de-boi, seu animal, e andar por aí nos brilhos dos modismos, esquecendo suas verdadeiras raízes em nome do novo tão vergonhoso para um homem de bem e que se respeita.
E relataram muito mais coisas. Mas o interessante ficou para o final, pois quando perguntei como era a aparência desse velho, mesmo de costas e já caminhando ao longe, o meu melhor contador de histórias disse que ainda ontem o tinha visto. E lembrava bem dele dizendo que o sertão vai virar mar e o mar virar sertão. E depois já o avistou sumindo na curva, com um roupão desgrenhado de linho, cabelos brancos alongados e tendo à mão um cajado.
Então me deu uma vontade danada, coisa que até hoje tenho, de entrar por aquelas caatingas, andar por aquelas estradas de terra, pedras e espinhos, para encontrar Antônio, o Conselheiro.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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