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quinta-feira, 8 de setembro de 2011

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 24 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 24

                                         Rangel Alves da Costa*


Sentindo as pernas molhadas da própria urina, mas principalmente por ter ouvido o nome de pessoa tão importante e temida tanto pessoal como politicamente, o Deputado Serapião, com a cara de quem havia saboreado um veneno amargo num doce, rapidamente virou as costas e saiu em disparada, dizendo nesse percurso apenas que Carmen desse lembranças ao seu bom amigo.
Enquanto a advogado quase corria atrás do deputado, ela rapidamente juntou suas coisas para ir embora. Não sabia bem nem como estava se sentindo no momento, mas gostou do efeito surtido pelo nome do seu velho pai perante o parlamentar falastrão. Havia tido ali mesmo uma ideia que gostaria de colocá-la em prática ainda naquela manhã, principalmente depois de ter ouvido o que os dois confessaram.
Assim que a moça chegou com a encomenda, agradeceu num instante, desejou-lhe boa sorte, e no outro já estava saindo do escritório. Mais adiante, já próximo ao estacionamento, o deputado andava apressado, se atropelando nas próprias pernas pela situação incômoda e vexatória que estava passando. Percebendo o que se passava, Dr. Auto falou atrás do homem:
“Mas o senhor só tem esse problema de mijadeira quando...”. E nem terminou de falar, pois o deputado se virou feito um raio e retrucou:
“Se falar o resto mando cortar suas pernas, está ouvindo? Não vê que o que aquela infame daquela moça falou prejudica boa parte de nossos planos. Se ela souber alguma coisa e der com as línguas nos dentes não vai ser tão fácil assim de eliminá-la não, principalmente se aquela cobra velha do pai já estiver por dentro do assunto. Por via das dúvidas acho melhor mandar dar um jeito nela o mais cedo possível. Se ela não souber de nada vai morrer inocente. Mas é assim mesmo, pois tanto inocente vive por aí pagando pelo que não deve, então por que ela seria melhor do que os outros...”.
“Deputado, o senhor enlouqueceu deputado?”, indagou desesperado o causídico, mas o homem já estava entrando no carro e nem olhou mais para trás. Dentro do veículo parlamentar, dando ordens para que o motorista fosse urgentemente até sua mansão, Serapião chegava a estremecer por dentro e a chorar de raiva porque sabia que não podia fazer nada contra Carmen Lúcia, ainda que ela já tivesse o conhecimento de tudo e resolvesse acabar com os seus dias. Como não havia mesmo outra solução, o jeito era ficar blefando perante o advogado e esperar que nada disso ocorresse.
Já Carmen estava se achando mais entusiasmada com as recentes descobertas. Mas precisava saber mais, muito mais. E nessa intenção é que decidiu buscar outras informações de uma fonte primorosa, que era através do próprio juiz titular da vara criminal onde Jozué e Paulo estavam sendo julgados.
Planejou tudo rapidamente, como deveria realmente fazer não só uma boa advogada, mas também uma eficaz investigadora diante daquilo que o caso requeria. Assim, chegaria ao fórum e iria diretamente à vara criminal e, na condição de estagiária do Escritório Auto Valente de Advocacia, se informaria se o magistrado estava em audiência ou disponível para o repasse de uma rápida informação.
Tinha máxima certeza que o juiz, ao ouvir que ela estava em nome do advogado e se estivesse também envolvido com toda aquela corrupção judicial e aberração jurídica, não demoraria em mandar entrar e conversar reservadamente. Esse povo, quando está sendo agraciado por fora em troca de sentenças, geralmente acha que todo enviado do cabeça-chave vai lhe entregar alguma importante encomenda ou repassar uma informação tão esperada.
Assim, ao entrar na vara criminal, se identificar e perguntar se poderia falar com o juiz titular, o serventuário pediu um minutinho e foi até a sala do magistrado, e aconteceu realmente o inesperado. O próprio magistrado apareceu à porta e todo sorridente acenou para que ela se aproximasse. Mas por que tanto interesse, por que tanta educação e alegria em receber uma mera estagiária? Carmen ficou se indagando enquanto era conduzida até o gabinete reservado. Quando entrou, ele fechou a porta e ofereceu-lhe a melhor cadeira.
Jovem ainda o juiz, com um olhar que mirava tudo ao mesmo tempo, de cima a baixo, como se não quisesse ter nenhuma dúvida sobre qualquer coisa que estivesse diante de si. E antes de Carmen falar qualquer coisa já foi ouvindo:
“Dr. Auto hoje não quis me dar a honra da tão esperada visita, e logo hoje que as encomendas dele já estão no forno, já estão ficando prontas, já estão na medida do prometido. Coisa de amigo, não falho nunca. Sou adepto daquela máxima que diz que uma mão lava outra, e como ele tem se mostrado muito amigo, nunca esquece do meu presentinho, então não poderia negar nada do que me pediu. As sentenças já estão prontas e amanhã cedinho serão prolatadas. Pena máxima, condenação absoluta para os dois, sem saída, sem choro nem vela...”.
Carmen se segurava como podia para não mudar sua feição, para não se espantar nem aborrecer com aquela nojeira toda, covardia indescritível, extrema injustiça. Procurando dialogar sobre o assunto, falou:
“Então Jozué e Paulo não conseguiram provar inocência e o destino agora certamente será a penitenciária, não é mesmo excelência?”. Então ele prosseguiu, colocando a carteira porta cédulas sobre a mesa, talvez querendo logo lembrar alguma coisa:
“Perfeitamente, minha caríssima. Regime inicialmente fechado e para sempre fechado, pois sempre haverá algum problema que impeça a progressão. Dr. Auto me disse que vai negligenciar os recursos e simplesmente deixar fluir o trânsito em julgado da sentença e pronto. O nobre advogado tem que saber, por isso tem de reconhecer o meu apoio ainda mais, tendo em vista que nem considerei muito as pressões de um colega magistrado, que é tio da mocinha que estava gostando do Paulo e fato que ocasionou a ruína do rapaz. Sei que o juiz é meu amigo e que trocamos favores, mas o pai da mocinha, que é irmão dele, é um tremendo mão de figa e fez praticamente todo o acerto com o Deputado Serapião Procópio. Como o deputado exigia muito para que o Dr. Auto mentisse durante toda a defesa, levando evidentemente o rapaz à ruína processual, então é que passei a fazer os acertos diretamente com Dr. Auto, que é homem de larga visão. O mesmo aconteceu com o outro inocente, mas tornado de uma hora pra outra num bandido extremamente perigoso e cuja pena foi às alturas. Tinha que ser assim porque o pai do rapaz, o mesmo rapaz que é o verdadeiro bandido e que o tal Jozué foi incriminado no lugar dele, é uma pessoa que gosta muito do filho, quer protegê-lo da prisão e por isso investe muito na sua inocência, mesmo sabendo que é bandido de marca maior...”.
Carmen estava completamente indignada, quase não suportando ouvir mais tanto absurdo. Mas enfim, manteve a postura e perguntou ainda: “Então as sentenças já estão prontas, os dois foram condenados a pena máxima e amanhã tais resultados sairão oficialmente?”.
“Isso mesmo minha jovem e futura advogada, isso mesmo. Ao assinar as sentenças estarei lavando minhas mãos. E farei isso com alegria porque estarei ajudando aos amigos. Na verdade, a vida judicante tem me ensinado muita coisa, principalmente que devemos deixar de ser insensíveis com a vida dos outros. Basta que lembremos dos nossos e tentemos protegê-los. Já os outros tanto faz como tanto fez. Ademais nunca vi dizer que um juiz tivesse remorso ou deixasse de dormir muito bem porque mandou um inocente pra penitenciária, apodrecer lá dentro”.

                                                  continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com  

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