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terça-feira, 25 de outubro de 2011

BONECA DE PANO E DE SENTIMENTOS (Crônica)

BONECA DE PANO E DE SENTIMENTOS

                                   Rangel Alves da Costa*


Era apenas uma velha boneca de pano. Tão velha e tão nova, quase da mesma idade que a menina tinha agora.
Dádiva artesanal de sua avó, era toda costurada à mão, com corpo, braços e pernas inteiros, sem dobras, segundo o enchimento de lã permitiu. Cabeça arredondada, olhos negros grandes, ovalados, bordados cuidadosamente com íris e tudo; sobrancelhas da mesma linha em ponto curvado.
Os cabelos eram negros e escorridos, feitos de pano dobrado e desfiado, escorridos à força com pente. O vestido, num modelo simples, de gente interiorana, era claro com pequenos floreios, tendo fita de renda fininha como arremate, já no meio dos joelhos e também na ponta das mangas. Era uma mocinha chique e grã-fina a bonequinha da menina. Duas bonecas, melhor dizendo.
Tinha até nome a boneca de pano, renda e linha; casa de moradia também, ainda que esta já estivesse guardada num quartinho das bugigangas lá nos fundos da casa. Sem a casinha, numa espécie de boneca sem teto, morava agora por cima da cama de sua dona ou mesmo esquecida por cima do tapete ou até debaixo da cama.
Certa vez a menina voltava da escola quando avistou ainda ao longe uma coisa que não podia acreditar de jeito nenhum. Se aquilo se confirmasse também ninguém ia acreditar nela. Mas a verdade é que a boneca estava em cima da janela, de olhos vivos, toda viva e cheia de vida por sinal, olhando o roseiral mais adiante.
Correu para sentir aquela estranheza mais de perto, pois sempre soube que boneca de pano só virava gente em histórias daquele sítio, mas no descuido da correria, mudou o olhar um instante e no outro já não mais encontrou nem sombra daquela espevitada na sua janela.
Pensou que no susto ao avistá-la, ao ver que a sua dona poderia descobrir seu poder transformador, ela tinha caído e se esborrachado no chão. Mas não, estava jogada, esquecida num canto como uma boneca qualquer. E o pior, entristecida demais, numa solidão que deveria ser dolorida demais até em boneca. Correu até ela, segurou-a nos braços e se jogaram na cama.
Não durou muito e lembrou que tinha uma coisa muito importante, mas muito importante mesmo, para dizer à boneca. Deu um pulo da cama e seguiu até o espelho da penteadeira levando consigo a amiga. Colocou-a sentadinha perto de um porta-retrato e depois começou a se olhar, ajeitando os cabelos, tocando o rosto, passando uma gotinha de perfume nos lados da orelha, e depois disse:
“Tá vendo como eu tô mocinha? Quando recebi você de presente eu ainda era muito novinha, bonequinha igual a você. Agora já cresci, já sou menina moça, já tenho até namorado. Lembra que eu saía com você, até chorava para que estivesse sempre ao meu lado. Continuo querendo assim, mas o problema é que mocinhas não podem mais brincar de boneca. Creio que está me entendendo, por isso temos que ficar um pouco mais distantes, aqui no mesmo quarto só que você guardadinha num canto, sem ter mais essa liberdade de ficar jogada por cima da cama ou estirada pelos cantos esperando a minha volta. A não ser que...”.
Dizia isso com o coração apertado, quase chorando, louca pra olhar pra boneca na sua mudez e quietude, porém o que fez foi colocá-la novamente no braço e seguir em direção à janela. E lá, colocando a amiga sentada no umbral, continuou:
“A não ser que me diga o que fazia aqui na janela, feito gente de carne e osso, olhando de canto a outro, parecendo acostumada com essa paisagem. Eu vi, mas se você quiser pode ficar feito boneca mesmo, toda muda, quieta, calada, com a boca costurada com agulha e linha. Boneca assim, sem sentimentos, não vai achar ruim ou sentir nada se eu deixar esquecida trancada num cantinho do guarda-roupa. Mas se quiser me dizer, então...”.
Agora foi a menina que ficou em silêncio esperando se vinha qualquer resposta. O tempo passou e nada de manifestação da boneca. Como achou que tinha sido dura demais com sua amiguinha, até injusta por tê-la amedrontado pelo que não teria coragem de fazer, decidiu abraçá-la novamente e pedir perdão. Mas quando tocou no pano sentiu que ele estava molhado.
As lágrimas desciam dos olhos da boneca e encharcavam todo o seu corpinho de pano. E em seguida a menina ainda ouviu uma coisa que jamais esqueceria: “Você sempre conversou comigo, me fez ouvir muitas coisas, me tratou como gente. E também aprendi a ser gente mesmo do jeito que sou e ter um coração do jeito que você me ensinou”.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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