SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 18 de outubro de 2011

LEI DA SIMPLICIDADE (Crônica)

LEI DA SIMPLICIDADE

                                              Rangel Alves da Costa*


Porque a simplicidade autentica a pessoa, faz com que o indivíduo seja verdadeiramente o seu íntimo, sem imposições ou restrições, é que deveria existir uma lei, tão natural quanto o existir, prescrevendo:
É permitido encher o prato com o tanto de comida que quiser, comer com a mão, lamber os beiços, roer os ossos, fazer bolinhos de feijão com as mãos e depois molhá-los no caldo gordo e apimentado.
É permitido dizer abertamente do que gosta de comer e, sem qualquer receio, afirmar que não vive sem ovos com feijão, mortadela com feijão e arroz, goiabada com queijo, farofa de ovos e macarrão com salsicha.
É permitido comer em pé na cozinha, numa cuia no quintal, num prato de alumínio caminhando pela casa, jogar farinha seca na boca, cortar banana e espalhar por cima do prato, comer café com farinha, palitar os dentes com fiapo de madeira.
É permitido usar no bolso espelhinho ovalado e patapata, carteira sem ter dinheiro, isqueiro sem ter cigarro, um retrato da namorada.
É permitido colher flor do campo para presentear, desenhar o nome do amor no tronco da velha árvore da praça, escrever versinhos de rima pobre porque somente assim sabe dizer que ama, mandar uma maçã do amor, soprar beijos ao vento em sua direção.
É permitido mandar recadinhos pelas colegas, passar bem ao lado feliz e fingir que é orgulhosa demais, desenhar um coração na folha de papel, escrever confidências na agenda, ficar triste na janela, chorar com saudade de alguém.
É permitido ter saudade, recordar e entristecer, olhar o relógio como se estivesse esperando alguém, sair à porta e à janela cinco minutos depois do apito do trem, ouvir uma música e repeti-la, ouvir mais uma vez e passar o lenço nos olhos.
É permitido sofrer, chorar, ser realista, dizer o que sente, mostrar o que sente, jamais ser fingida, jamais esconder sentimentos, dizer a verdade para desabafar, gritar para ser ouvido, fazer silêncio para ser sentido, viver é permitido.
É permitido sair descalço de casa, passear pelos campos, encher as mãos de pedrinhas e sair jogando por aí, tomar banho pelado no riacho, juntar as mãos e beber da água da fonte, colher a fruta do pé, saborear a fruta no mato, falar com os passarinhos, sentar numa pedra e descobrir que a pedra tem sentimentos.
É permitido esquecer a chave de casa em outra casa, calçar chinelos trocados, não lembrar que a roupa está rasgada e vestir, não pentear os cabelos, não ter um centavo no bolso, ficar de água na boca, pisar em falso e soltar palavrão.
É permitido ouvir o que gosta, apreciar música brega, cantar embaixo do chuveiro, cantar mesmo desafinadamente, colar com durex a capa do vinil, passar um pano sobre o disco, ligar a radiola antiga, abrir uma cerveja, cantar e dançar sozinho.
É permitido ter medo de coisa do outro mundo, não varrer a casa sexta-feira da paixão, fugir de assombração, não ir até a moita escura em noite sem lua, não abrir a porta se quem está fora não diz o que quer, não passar em encruzilhada depois que já é sexta-feira.
É permitido gostar de ver a chuva cair, desenhar um nome na janela anuviada, sair pra rua e tomar banho na molhação, fazer festança nas águas que escorrem da telha no quintal, gostar do cheiro do barro assim que as águas começam a cair, entristecer durante o temporal, não saber se chora ou se está molhada.
É permitido gostar da tarde e do entardecer, da brisa, do vento e da ventania, do passarinho voando sozinho e do bando em revoada, da folha que passa bailando, da folha morta que cai ao chão, da árvore no seu leito de outono, da natureza assobiando e chamando pra passear na floresta.
É permitido ter paz e felicidade, ter esperança e fé, ter força e acreditar, ter coragem e destemor, ter orgulho e humildade, ter sonhos e saber acordar, ter a noite e o dia, ter amor e ser amar, ter para dar e saber que também merece receber.
É permitido viver. Morrer também é permitido. Mas é permanentemente proibido viver pensando na morte.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com   

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