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sábado, 29 de outubro de 2011

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 75 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 75

                                          Rangel Alves da Costa*


Mais tarde, dali a alguns dias, quem sabe, quando chegasse a notícia de sua transferência para um estabelecimento prisional mais rígido, certamente que ele indagaria o porquê daquilo tudo e não ouviria de ninguém qualquer resposta. Apenas vamos, ande logo, entre aí que o fim lhe espera. Jogado seria, empurrado seria, esquecido seria. Não seria mais nada...
Nesse sentido a sanidade, o entendimento do que acontecia a si mesmo e ao redor, era incomparavelmente pior do que a loucura, a insanidade, a perda total do juízo, como já havia acontecido com Paulo. Este, num estado lastimável, num surto psicótico definitivo, numa disfunção psicótica progressiva e debilitadora da mente e do físico, com estado comportamental deprimente, nem parecia mais ser humano, senão uma folha perdida ora na chuva ora na ventania.
Se na visita que Carmen e a irmã fizeram ao rapaz ele já estava num visível estado de insanidade, não durou muito, coisa de dia após dia, para a situação piorar sem que ninguém atentasse para o fato de que precisava de tratamento urgente. A própria Carmen havia conversado com o diretor da penitenciária sobre o problema, informando-o sobre a necessidade de um tratamento externo. Foi-lhe prometido providências acaso o advogado não providenciasse que tal fato chegasse ao conhecimento da justiça.
Contudo, com o falecimento da moça tudo ficou esquecido. Depois daquela visita, a irmã esperava retornar ali juntamente com a amiga. Sozinha não sabia nem chegar nem sair daquele ambiente, que dirá conversar com alguém e pedir providências. Quando soube pelo noticiário o que havia acontecido com a amiga então se desesperançou de vez em visitar novamente o irmão. Queria muito fazer isso, e todos os dias se fosse possível, mas o problema é que se sentia impossibilitada de ter acesso àquele lugar terrível. Ou ele ficaria recuperado e saía de lá um dia ou jamais veria seu semblante outra vez.
Mas como a ciência explicaria o jovem saudável, consciente de sua realidade, se transformar num ser humano totalmente diferente depois que foi enclausurado? Raiva, ódio, revolta, não aceitação daquela condição subumana imposta quando tinha plena consciência de sua inocência? Aquele cotidiano mortal e moralmente indigno teria afetado seu estado psicológico ou apenas despertado um distúrbio preexistente? Toda aquela situação serviu como alimento para a angústia, a tristeza, a depressão, o entorpecimento de suas forças, o enlouquecimento?
A ciência é clara ao dizer que os psicóticos, os mentalmente transtornados como Paulo, podem, dependendo da intensidade do problema, causar perigo a si mesmos, vez que a realidade passa a ser percebida de uma forma completamente distorcida, e consequentemente podem fazer as coisas mais incríveis e dolorosas com base nesta ilusão. Nesse contexto, impossível de ter ou manter uma válida percepção de si, das forças ambientais vivenciadas, das dimensões temporais e espaciais.
Ora, é o mundo ao avesso e ele girando dentro dele de cabeça pra baixo. Mas que cabeça, pois esta sem juízo não é nada? Talvez um mundo, talvez Paulo, mas este vivendo naquele sem ter mais como se sentir nele.  Daí as dolorosas consequencias, com sentimentos, ainda num estágio primário da doença, que vão da indiferença à depressão, do medo à raiva, do lógico ao absurdamente impensável.
Inicialmente, quando estava aparentemente sem ter problema algum, sem manifestar crises violentas ou perturbadoras, ainda que de forma passageira, ainda assim já não tinha condições de tomar conta de si mesmo, de viver de uma forma normal, alimentando sonhos, expectativas, desejos e até se relacionar bem com os outros. Ora, era impossível pensar nisso ali. O mais normal, o mais são que pudesse existir, quando pouco falava sozinho, fazia gestos repentinos querendo voar, inventava de ter a voz dos bichos e com esse brado dialogava suas queixas consigo mesmo.
Quando os surtos deixaram de serem apenas aparências e tomaram formas através das mudanças comportamentais, então tudo começou a apagar em segundos. Igual lâmpada que apaga e acende, a luz apenas às vezes brilhava na escuridão. O mundo desandou, a mente se transformou num horrendo jogo, as atitudes então, de tão insanas e aterrorizantes, passaram a causar arrepios e fazer nascer piedade aos olhos dos outros iguais, mas se revestindo do direito de ver o mundo desabando apenas no outro. Assim aconteceu com Paulo ou com o seu resto de ser.
Trilhando o percurso da loucura de forma rápida e progressiva, verdade é que, aos poucos, manifestações incomuns passaram a fazer parte do seu comportamento, do seu jeito de ser e enfrentar a realidade. Falava sozinho, alternava instantes de calma absoluta e de euforia extremada, atirando objetos nos outros, por todo lugar, querendo subir pelas paredes, querendo sumir, e efetivamente sumindo no inconsciente.
 Loucura ou psicose, o que se tinha era um distúrbio atípico da mente humana. Com tamanho transtorno psíquico, estava completamente dissociado da realidade; não conseguia mais elaborar idéias, entender nem o certo nem o errado, diferenciar o grito do silêncio, a luz da escuridão. E então os gritos, os berros, as aflições, as correrias por medo, as afirmações de que seres estranhos queriam chupar o seu sangue. E de repente o silêncio, a calma, o sono profundo jogado num canto qualquer, com insetos passeando pelo seu corpo e ratos lambendo e cheirando sua pele.
Verdade é que sua psicose, sua loucura, criara um mundo à parte, ainda que naquele mundo já doentio, absurdamente enlouquecido, cruel, destrutivo e perseguidor. Talvez por instantes, diante da dor sentida na pele, interagisse forçadamente com aquela realidade, mas certamente chamando para si, e até porque mais confortantes, seres e objetos irreais, ao mesmo tempo em que se ausentava, por força dessa fuga, realidade concreta.
Nesse mundo, que talvez para o seu bem blindava o fio da lâmina cortante nos sentimentos, vivenciava alucinações, delírios, alterações de atitudes, tendo seu norte e rumo de vida a mente confusa, mas ainda assim sem ter mais qualquer força perceptível de estar agindo dessa ou daquela forma, de forma estranha ou não. Conseguintemente, não haveria como ser visto como normal nem se relacionar normalmente com as outras pessoas, com os agentes e presidiários, muito menos manter uma aparência que fosse tida apenas como estranha.
Pelo contrário. Jamais poderia ser visto dentro da normalidade, ainda que ali dentro atitudes desviantes fossem mais que normal, de alguém que, por exemplo, se sentia verdadeiro rato e rastejando, fazendo grunhidos, ia cheirar ao redor dos lixões, revirar um daqueles depósitos e se entocar por dentro, ficando ali até que fosse percebido por alguém. E Paulo já havia ultrapassado até esse limite do desumano. Sua loucura já era total, visível sob todos os aspectos, lancinante.
E um doido atrapalhando a loucura dos outros loucos, fez surgir na mente de um daqueles presidiários uma incomparável brutal ideia: martirizar Paulo e prendê-lo de braços abraços nas alturas, deixando-o lá até a morte, feito um Cristo enlouquecido e que, por isso mesmo, não sabia por que morria.

                                                       continua...






Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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