SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 14 de outubro de 2011

ROTEIRO DE FILME SOBRE ELA (Crônica)

ROTEIRO DE FILME SOBRE ELA

                                            Rangel Alves da Costa*


Na última cena ela caminha por uma estrada. Não há como dizer ainda se está retornando ou partindo, pois mesmo que vá caminhando e se aviste somente suas costas, ainda assim não há como confirmar o destino. Por enquanto não.
Andando pela estrada e estando de costas, também não é possível avistar sua feição, dizer como é o seu semblante, afirmar se ainda é jovem, madura ou já envelhecida. Talvez não seja muito velha, pois o andar não é dificultoso; talvez também não seja muito nova, pois não vai nem apressada nem saltitante. Contudo, por enquanto nada sobre isso é possível afirmar ainda.
Mas nem tudo é dúvida, pois alguns aspectos já podem ser confirmados de antemão. A estrada é de terra, de chão duro, guarnecida por espinhos e pedras, com pequenos tufos de mato que se espalham nas margens, uma ou outra árvore maior e mais frondosa. É caminho deserto, tudo indica, pois não se avista nem moradia nem outras pessoas ao redor ou mais distante.
Mas será que é manhã, instante que o sol deveria estar mais ardente ou já entardecer? Isso também ninguém sabe ainda, vez que nuvens carregadas anunciam um temporal, uma tempestade talvez. Se soubesse se o vento soprava forte ou fraco, se era apenas vento de balançar cabelos ou ventania, então diria sobre o feitio da chuvarada que com certeza logo cairia.
E eis que surge outra questão, que é a de saber se, indo ou vindo, haverá tempo de buscar proteção, entrar numa casa ou qualquer lugar onde a natureza em fúria não causasse tanto temor. Se estivesse indo certamente logo correria para qualquer abrigo mais próximo, qualquer porta ou buraco que encontrasse; se estivesse chegando faria tudo para alcançar a segurança do lar humilde e confortante, ainda que do telhado caia tanta chuva quanto no mundo lá fora.
Colocadas tais dúvidas e questionamentos, urge que tratemos do enredo em si. Quer dizer, será preciso dizer o porquê de ela estar naquele momento caminhando por aquela estrada, quais os motivos que a predispuseram a isso, o que realmente está por trás daquela pessoa solitária naquela estrada também tão solitária e triste.
Como flashback, com cores em preto e branco, num tom ocre para caracterizar o retorno a outros tempos, aparecem sua casa, a paisagem em tons e aspectos de outono devastador e a porta e a janela de sua moradia simples ora se abrindo ora fechando. De vez em quando saem duas pessoas de lá, fazem alguma coisa nos arredores e depois retornam. São seus pais.
Filha única, ela ainda é criança nessa primeira parte do filme. Todos os dias, logo cedinho e ao entardecer, a menina sai com um vaso de água na mão e segue em direção a um pé de roseira que cultiva com paixão em meio à aridez esturricante. E para espanto de quem não conhecesse sua luta diária, a planta cresce verdejante e vistosa.
Noutra cena, com as cores da película já ganhando uma tonalidade mais viva, ela já é mocinha, uma linda donzela de laço de fita no cabelo e saia de chita rodada. Ora é vista na janela olhando entristecida adiante, buscando explicações para a mocidade no horizonte, ou então saindo com seu vaso de água em direção à roseira com suas rosas maravilhosas. Nessa cena o pai já não aparece mais, apenas sua mãe já envelhecida antes do tempo e num entristecimento de cortar coração.
Na cena seguinte, com as cores já em perfeita combinação com a nova realidade, ela aparece na janela com um buquê de rosas nas mãos. A câmera se aproxima mais do seu rosto e mostra as lágrimas, os olhos marcados por algum sofrimento, o rosto ainda mais belo e mais triste do que a paisagem, que continua em nítida desolação. A câmera vai girando e mostrando um clima de abandono, uma sensação de desesperança e sofrimento. A mãe não aparece mais, não sai mais pela porta. A filha está sozinha.
Ainda é a mesma cena. Percebe-se que é entardecer e que o vento sopra forte, levando folhas pelo ar e zunindo uma cantiga silenciosa. Ao passar pela janela vai levando cada pétala de flor que a mocinha vai jogando pelo ar. Quando não resta mais nenhuma flor e um espinho do fino galho lhe fere o dedo, aperta-o na madeira da janela e fixa ali um sinal de sangue.
Depois fecha a janela e a porta e segue pela estrada. Agora já é possível saber que ela está partindo. E talvez nem sinta a chuva que já começa a cair. Da vida já aprendeu demais sobre as tempestades, ventanias e vendavais.
A chuva cai, mas são seus olhos que inundam a estrada. Pra onde ela vai agora?




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com  

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