SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 24 de outubro de 2011

TERRA (Crônica)

TERRA

                                     Rangel Alves da Costa*


Gosto tanto desse chão que piso que - diferentemente da rainha louca batendo os sapatos na despedida para afastar o pó dessa terra - viveria com a alma nativa carregada dessas marcas por todo lugar onde caminhar.
Árida, como é a doce e terna terra da minha aldeia, massapé, como também há por lá, ou mesmo barro batido, chão coberto de ponta de pedras e espinhos, lamaçal quando a chuva cai para alegrar a vida, tudo é leito e berço por onde se trilha a vida. Terra amarela, vermelha, chão esturricado, tudo poeira na estrada, mas sempre terra, sempre chão, sempre caminhos abertos.
De manhãzinha a lavadeira desce o barranco com cesto cheio na cabeça e vai cantando enquanto olha por onde pisa; o vaqueiro acostumado com o cheiro do estrume deixa tudo secar sobre a terra e depois espalha novamente sobre o chão do quintal que é pra horta verdejar; o carro-de-bois vai cantando lentamente seu cantar gemido, enquanto o carreiro segue adiante abrindo caminho sobre a terra para a sobrevivência passar. Cuidado com a curva, cuidado com a moita e o bicho escondido na toca.
Sob sol e chuva o lavrador revira a terra, semeia, aduba de esperança e deixa o chão prenhe a vingar; o jardineiro acordou cedinho e ouviu da roseira que o chão está muito seco para que suas filhas nasçam sedosas, cheirosas para os enamorados; o limpador da praça de outono todos os dias se espanta com a terra completamente recoberta pelas folhas trazidas pelo vento. E quando mais varre o chão, mais passa o gadanho colhendo tudo, mais a terra fica ocre, amarelada, marrom, das folhas que caem e ficam se movendo querendo voar.
De lado a lado tudo é meu, numa distância que os olhos nem podem enxergar. Há muito que sou dono de tudo, latifundiário por herança, senhor de tudo que nela cresce de onde estou até onde você nunca estará. Não tenho um só quintal ou um palmo de chão, mas tenho tudo que meus olhos desejam ter, pois o que vou plantar e colher só nasce nessas ilusões que a gente tem de ter muito, pois sobre tudo que está seco e desolado agora crescerá um dia um trigal que, de tanto pão e tanta vida que dará, afastará de vez a fome do mundo.
Sei que a terra tem tantos donos que se cada grão fosse destinado aos senhores, ainda assim somente o pó para satisfazer a ânsia de ter. Milhões de hectares de um só dono não significam que este tenha um só pedaço de chão. Primeiro porque nenhuma terra é de valia se nela nada frutificar; segundo porque fazer frutificar em cima da terra aquilo que não nasça no chão, é o mesmo que encobrir o ventre que não sabe fazer outra coisa que não gerar alimentos para o mundo sobreviver; e por último, porque o alimento que deve ser na terra produzido é o que mata a fome e não o que alimenta a discórdia, como ocorre com a terra que só é utilizada para produzir aquilo que o pobre jamais poderá adquirir.
Silenciosa, quieta, solenemente fixada no seu chão, a terra não diz nem que sim nem que não, nunca demonstra o que acha dos destinos que lhes estão impondo. E de repente a voz da terra, que já se cansou de ser transformada, desmatada, queimada, destruída, se abre num vozeirão. E que voz a bradar nas enxurradas, nos montes que desabam, nas encostas que se transformam em mar de lama e descem engolindo tudo, nos campos que de tão devastados não engolem mais a água e tudo vai escorrendo sem direção.
A terra vermelha de sol e a terra vermelha de sangue. Na beira da estrada há uma vergonhosa bandeira vermelha dizendo que por ali estão pessoas que precisam de terra para nela trabalhar. Invadem tudo, tomam as terras de seus donos, vão destruindo o que encontram pela frente e depois nenhum pé de feijão, nenhum pé de milho, nada de plantação. E a terra loteada, dividida no seu ventre, passa a ter nenhuma valia, nenhuma utilização, a não ser para passar de mãos em mãos através da troca, do preço qualquer. O que era terra nada mais será.
Há uma cruz na estrada por cima da terra, por causa da terra, na luta pelo chão. Há também uma vereda aberta na terra que leva a um mundo que poucos conhecem. E lá dentro, no meio da mata, o velho senhor da esperança, o catador de cada grão que pisa e se reconhece no chão, reúne suas últimas forças para perguntar se ainda restam os sete palmos de terra onde repousará no momento seguinte. Ou qualquer dia, com outro nome.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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