NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 77
Rangel Alves da Costa*
O corpo de Paulo foi retirado daquele local pelos agentes prisionais e deram destinação ignorada, simplesmente desapareceu. Foi enterrado no dia seguinte num cemitério qualquer, sem acompanhamento de qualquer familiar.
Na mesma manhã após o ocorrido, a sua irmã recebeu um comunicado urgente pedindo o seu comparecimento ao estabelecimento prisional. Como não dizia do que se tratava, sem menção alguma ao fato, ela simplesmente ignorou. Continuava com medo de ir até lá sozinha. E realmente não foi.
Um mês após recebeu outro comunicado, dessa vez informando que o seu irmão Paulo havia sido sepultado no Cemitério das Almas Aflitas. Contudo, não citava em que local do sepulcrário estava o corpo, o número da cova, qualquer indicação para se saber a exatidão do último endereço.
Mas nem os responsáveis pelo sepultamento sabiam. Não precisava saber nada disso. Ora, tanto fazia. Era apenas um indigente, um presidiário. Pessoas assim não merecem qualquer respeito ou consideração, mesmo depois de mortos. Por isso mesmo que deveria ser logo esquecido pelos seus e pela sociedade. Um a menos, apenas um a menos, era assim que pensavam.
Assim que souberam da trágica morte daquele que tanto lutaram, gastaram, redobraram esforço e poder, o empresário, pai da mocinha que um dia havia incorrido no erro de gostar de um pobre chamado Paulo, bem como o juiz tio desta, não só se deram por satisfeitos em ter alcançado plenamente seus objetivos, que era acabar de vez com a vida do rapaz, como se dispuseram a preparar um grandioso brinde.
Como haviam conseguido isso tão eficiente e rapidamente, também logo mandaram organizar uma grande festa para comemorar. Espalharam que o grande festim seria em comemoração a uma boda qualquer, aniversário de casamento já duradouro, mas alguns, logicamente os envolvidos na organização criminosa, já sabendo que o motivo era bem outro.
Bebia-se do melhor uísque, saboreava-se o vinho mais festejado e da safra mais premiada, comia-se petiscos e pratos importados, ouvia-se o som harmonioso de uma grande orquestra de cordas. Um luxo só, relíquia da grã-finagem, coisa de gente influente e poderosa demais. Por isso mesmo que ali, ao lado da fina flor da corrupção, estavam juízes, empresários, parlamentares, desembargadores, ladrões endinheirados, políticos, puxa-sacos e uma leva burguesa malcheirosa e totalmente contaminada de podres e podridões.
E tudo para comemorar a morte de um inocente, de um pobre, de um morador de subúrbio, de um injustiçado, a morte de Paulo. Nunca mais ele andaria pelo mesmo caminho da mocinha, e por isso mesmo seu desaparecimento deveria ser tão festejado. No dia seguinte as colunas sociais estamparam o glamour, porém sem saber da covardia.
Não obstante tais absurdos, verdade é que dos envolvidos nessa trágica história de injustiça alguns já tinham partido, morrido em bem pouco tempo. Talvez outros ainda estivessem trilhando por esse mesmo caminho, seguissem esse mesmo enredo desumano. Mas estes não estavam do lado festivo, mas na fronteira dolorosa e sofredora. Até o momento já haviam pagado com a morte o preço da luta pela justiça as mães Leontina e Glorita, a sonhadora Carmen, o sempre indignado advogado Céspedes Escobar e agora Paulo, o louco, o nada. O inocente.
Mas não demoraria para a lista aumentar, pois o forte, o destemido e justiceiro senhor do agreste, apenas um frágil velho depois da morte da filha Carmen, morreu ao entardecer agrestino, de sol entristecido, enquanto estava sentado num banquinho debaixo da baraúna e ao lado da sepultura de sua menina. Cena mais comovente e tão verdadeira, numa partida em busca de um impossível encontro, talvez.
O homem era outro, estava completamente mudado, parecendo que havia perdido o gosto pela vida, pouco se importando com os negócios, as propriedades, as tantas posses, os amigos e familiares. Pouco comia, pouco falava, já não demonstrava disposição para nada. Inicialmente tencionou mandar investigar a fundo aquela história mal contada do acidente, contratando profissional competente para vasculhar tudo o que pudesse encontrar. Entretanto, tal ideia foi se esvaziando, esvaindo como a própria alegria e a vontade de viver.
A única coisa que verdadeiramente ainda lhe trazia preocupação era em estar sempre ali debaixo da sombra da baraúna, como se eternamente quisesse velar sua menina bonita e tão amada. Seis da manhã e já estava por lá, voltando quando o sol esquentava; retornava ao local logo que o sol baixava, começando o entardecer. E ninguém o encontrava mais em outro lugar senão ali conversando palavras de dor e saudade. Um banco de madeira, um velho pai sentado mirando o túmulo sempre florido da filha.
Mas não somente lamentação e lágrimas se derramando dos olhos, pois também mostrava uma feição mais alegre, pois também sorria e até parecia ter dito ou ouvido alguma coisa animada e interessante. “Filhinha, durma sossegada que seu pai está aqui, não vai sair tão cedo. Pode descansar em paz, durma tranquilamente que espero o seu acordar para beijar seu rosto, minha menina!”.
“Carmen, minha pequena Carmen, seu pai já está cansado demais dessa vida, já se esforçou demais, já fez de tudo e viveu de tudo, e agora já está chegando o momento de descansar. Sei que onde você está é um lugar muito bom, pois os anjos devem morar num lugar muito bonito, com uma natureza muito mais bonita do que essa daqui. Sei que não mereço ir pra esse lugar de música tão suave e tão perto de Deus, mas peça aos anjos e santos pra eu ficar só um pouquinho ao seu lado, abraçar um abraço de pai e depois tomar a estrada que merecer. Espere por mim Carminha, espere por mim que não demoro a chegar por aí!”.
E com as mãos encobrindo a face avermelhada de tanto pranto, baixava a cabeça perto da terra tomada por flores do campo. Numa tarde quis beijar a cruz e caiu desfalecido por cima da sepultura. Quando a noite chegou e ele não havia retornado, se encaminharam até a velha baraúna e o encontraram caído sobre o túmulo, como se estivesse abraçando a terra, beijando-a sorridente, feliz.
Era mais um a ser somado dentre os mortos em consequencia de uma única e injusta decisão: condenar dois inocentes em nome da honra corrompida e corruptora e do poder daqueles que vivem em torno das leis, que deveriam utilizá-las como defesa e como parâmetro para justo julgamento. Mas não, apenas no sentido de uma injustiça vergonhosamente praticada é que agora tantos mortos tinham de ser somados.
Daí ser ver as consequencias nefastas de uma injustiça. Sendo a injustiça a falta ou ausência de justiça, bem como o uso dos meios próprios desta para distorções de julgamento; ou ainda a prática de atos condenatórios com base na consciência individual ou para atender objetivos escusos, logo se vê o resultado disso. O simples ato de condenar injustamente inocentes trouxe em si consequencias que infelizmente não haviam refletido sobre culpados pelos atos e ações de injustiça, mas tão-somente pelos que haviam lutado pela prevalência do justo diante de todo o mal articulado.
Ora, até esse momento todos os reveses se mostravam refletindo naqueles que estiveram ao lado da justiça, enquanto os injustos continuavam apenas observando as consequencias trágicas acontecendo do outro lado. Enquanto uns morriam, outros, os injustos, brindavam. Mas até quando? Será que a injustiça continuaria sendo premiada enquanto os que pagaram com a vida lutando pela justiça eram simplesmente sepultados?
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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