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sábado, 8 de outubro de 2011

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 54 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 54

                                          Rangel Alves da Costa*


Diante das informações do diretor, Carmen afirmou que Paulo já havia sido sentenciado, condenado a pena máxima e o seu processo estava agora em fase recursal. Contudo, o remédio jurídico ainda não havia sido providenciado, o que tinha de fazer antes de expirar o prazo legal e a sentença transitar em julgado.
Achou conveniente explicar toda a situação, não só de Paulo como de Jozué, apontar as motivações por estarem ali, a inércia e falcatruas do advogado e as consequencias disso tudo na vida deles, culminando até com a morte de suas mães. Teria que ser assim para possibilitar, quem sabe, um outro olhar sobre eles, menos perseguições, menos violências, menos torturas.
Ademais, porém isto não precisava dizer, os carrascos se espalhavam por todos os lugares travestidos de agentes, de guardas prisionais ou outra denominação que o valha. Não todos, mas a barbárie praticada por alguns desumanizava cruelmente toda a classe. E não era demais que o diretor pudesse olhar com mais cuidado o tratamento que estava sendo dispensado aos dois. Sabia que era difícil, que a lei dali era outra, que o império da desumanização, da desconstituição do ser humano, da negação absoluta dos seus direitos, dava voz e razão de ser àquele inferno em vida.
O diretor ouviu com feição séria e preocupada, balançando a cabeça constantemente como quem estivesse dizendo que não era possível que fatos como aqueles continuassem acontecendo e com a participação da própria justiça. Falava logicamente em relação à inocência dos dois e lembrou que a situação ficava mais difícil ainda quando se sabia da dificuldade de se restabelecer a justiça quando o réu no caso era a própria justiça.
Já calejado com situações como as descritas, conhecedor como ninguém do possível e impossível que faziam para jogar inocentes ali, porém disse que para salvar o exercício de sua função sentiria tristeza e revolta apenas internamente, pois externamente estava apenas cumprindo ordens superiores. Porque sabia que muitos daqueles que ali se encontravam estavam servindo apenas de bode expiatório, pagando pelos outros ou até inocentemente, até que gostaria de proporcionar-lhes o mínimo de dignidade, mas como o sistema prisional funcionava não seria de se esperar outra coisa senão absurdos e mais absurdos.
Para não tomar mais tempo do diretor, Carmen agradeceu as informações, a preocupação e principalmente as palavras corajosas pronunciadas. No reino dos ratos nem todo queijo está apodrecido, pensou. Isso demonstrava que a podridão não havia afetado por inteiro os responsáveis pelo sistema prisional. Prometeu que voltaria e disse que providenciaria urgentemente um pedido ao juiz sentenciante para que Paulo pudesse receber tratamento particular com especialista.
Como agradecimento pela visita e pelo diálogo construtivo, o diretor perguntou apenas se ela achava conveniente que mantivesse o rapaz isolado até que fosse atendido por especialista. Não tendo muito conhecimento nessa área, ela pensou um instante e respondeu que desde que o isolamento não importasse em reclusão maior, em ambiente fechado demais e mais insalubre ainda, até que poderia ser uma boa opção. Fosse como fosse, haveria de ter sol, céu, de modo que não sentisse cada vez mais abandonado pelo mundo e jogado no poço das almas perdidas.
No retorno ao centro da cidade, não lhe saía da cabeça o fato de ter que procurar ainda naquela tarde outro advogado para continuar na defesa dos dois. Continuar não, vez que só se continua aquilo que foi começado, mas começar praticamente do zero e logo na fase recursal, cujo prazo teria de ser respeitado, sob pena de preclusão.
Diante da situação, vez que os prazos processuais não acolhem inércia nem desculpas por atraso de ninguém, se pôs a escolher o melhor caminho para e efetivação de outro advogado nos casos. Estando patente que Dr. Auto Valente não prosseguiria no feito, ainda assim, até aquela data, e para todos os efeitos jurídicos, era o seu nome que continuava nos autos como defensor outorgado através de mandato.
Procurar o advogado para que o mesmo renunciasse os direitos que lhe haviam sido outorgados em procuração seria uma das opções. Entretanto, tal atitude, de antemão, já demonstrava alguns inconvenientes. Ele teria que rapidamente peticionar no processo explicando os motivos da renúncia, provando que cientificou os mandantes, a fim de que nomeassem substituto, e ainda assim continuaria a representando os dois durante os dez dias seguintes e desde que necessário para evitar-lhes prejuízos.
Contudo, numa situação igual aquela, por se tratar da necessidade de medidas urgentes e inadiáveis, nem a obrigação de prévio aviso existiria mais. O problema era saber como Dr. Auto agiria se lhe fosse exigido que renunciasse. Safado, verdadeiro biltre como era, para resguardar segredos existentes nos processo até poderia criar empecilhos, fazer de tudo para que outro advogado jamais lançasse o olhar naquelas vergonhosas peças processuais.
Qualquer advogado honesto e com senso apurado de zelo profissional, bastaria passar umas vinte folhas de cada um daqueles autos e certamente daria vontade de vomitar. Depararia com absurdos que o deixaria enojado, descrente que aquilo realmente pudesse ter acontecido e até onde a vergonhosa defesa tinha ido e suas nefastas consequencias. Porém, isso ainda não era nada se procurasse investigar mais a fundo o porquê daqueles descalabros. Então poderia chegar aonde nem o Dr. Auto nem os demais queriam.
Do mesmo modo, seria muito dificultoso obter substabelecimento. Dr. Auto mais uma vez faria tudo para protelar a concessão do documento transferindo seus poderes para outro advogado. Verdade que o próprio já sabia que não estava mais respondendo pela defesa, não mais falaria nos processos. Não faria mais nada, porém também não aceitaria que outro advogado interferisse no caso daqueles dois. Assim, tudo faria para que os podres não fossem descobertos, para que houvesse a perda de prazo recursal e a condenação fosse mantida.
Em meio a esse imbróglio, mas para evitar o pior, vez que a necessidade reclamava decidir rapidamente, Carmen achou melhor ela mesma peticionar, evidentemente colocando o nome deles como requerentes, revogando a procuração outorgada ao advogado. Diria apenas que não possuíam mais interesse em continuar sendo patrocinados pelo Dr. Auto Valente e, por imperiosa necessidade processual, sob pena de perda de prazo recursal, quando da apresentação dos recursos de apelação juntariam os documentos procuratórios conferidos ao novo causídico.
Na manhã seguinte, a primeira coisa que fez depois de levantar foi se dirigir novamente à penitenciária de passagem com os dois requerimentos para Paulo e Jozué assinarem.

                                                   continua...






Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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