NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 74
Rangel Alves da Costa*
Após a confirmação da morte de Carmen e sabendo quem poderiam ser os culpados, incluindo-se ele próprio, Auto Valente começou a amargar um sentimento de culpa que jamais esperava sentir em qualquer situação. Dor dilacerante, tudo parecendo corroer-se, como se o erro pudesse ser reparado pelo sofrimento. Agora era tarde demais, diria a lição exemplar.
Estava angustiado demais, entristecido, atormentado, arredio às situações normais da vida. Sem encorajamento para o trabalho, para talvez continuar enganando outros clientes, evitava até falar com o deputado ao telefone. O que para o homem continuava uma festa, para ele permanecia verdadeiro pesadelo. Era chamado a compartilhar dos prazerosos instantes, porém fugia para se esconder no profundo buraco da consciência do mal cometido.
Dizia-se vivendo agora num frágil fio esticado por cima de abismos. Como caminhar estava difícil, despencar lá de cima seria coisa de qualquer instante. No seu pensamento, insistente em não aceitar a ideia de que a morte da moça fora plantada por meio dele, desde o momento que começou aquela farsa com a família dos inocentes até o instante que deu continuidade ao plano, mesmo que agindo em nome de sombras poderosas, o único e verdadeiro culpado era o parlamentar. Estava certo, mas também errado.
Ele havia sido o fio condutor de tudo, não podia esquecer-se disso. Ele não honrou com seu juramento profissional e agiu para condenar quem deveria defender. Ele, juntamente com o juiz e o promotor, fez nascer e frutificar as acusações mentirosas, os absurdos jurídicos, as provas falsas e a materialidade enganosa. Ele era o advogado e, portanto, o insucesso premeditado recairia sempre na sua conduta. Ele, na verdade, compactuou com o erro que agora insistia em não reconhecer. Se o fizesse, se penitenciando com a verdade, certamente se destruiria, mas algum tipo de salvação lhe estaria reservada. Um resquício de salvação espiritual. Apenas isto.
Tendo por um dos culpados, mentor e verdadeiro assassino, o calhorda do parlamentar, então agora teria de buscar meios para que o mesmo pagasse pela vida ceifada do seu grande amor. O problema é que continuava sob suas ordens, fazendo o que ele mandasse, tendo que calar sorridente toda a dor imposta. E não somente isto, pois sabia que corria risco de morrer apenas pelo fato de considerá-lo um assassino. Situação dificílima, mas colhendo apenas o que havia plantado. Esquecer tudo e deixar pra lá, apenas procurando garantir sua sobrevivência seria uma solução. Mas não era nada fácil pensar assim.
E não era fácil porque estava sofrendo demais para calar de vez e deixar que tudo simplesmente fosse esquecido. Era o arrependimento que fragilmente lhe chegava, talvez muito tardiamente, mas que agora poderia trazer consequencias com duas feições diferentes: ou fugir dali e se embrenhar num lugar bem distante ou a afrontar a força dos poderosos e contar à imprensa, pois não confiava na polícia nem na própria justiça, toda essa trágica história. E tinha ainda mais uma via, e esta a mais extremada: vingar a morte de sua amada matando o deputado.
Estava vivendo, assim, com tais indagações e preocupações aflitivas. Mas na penitenciária havia gente também muito mais preocupada por causa disso, mas não propriamente pelo que o advogado iria ou não fazer, e sim com a continuidade daquela situação prisional que não tinha nenhuma razão de ser, de continuar subsistindo. E o pior é que não sabia que brevemente, com a transferência para outra penitenciária, tudo seria pior. Muito pior.
Tal era a preocupação de Jozué, o que não acontecia com Paulo, vez que este já estava completamente tomado pela loucura. A situação ali dentro, fosse para os conscientes ou insanos, estava realmente cada vez mais insuportável. E como se dizia, era apenas um presídio de passagem, um local onde se moldava, enfraquecia, tomava todas as forças do sentenciado, ou ainda não, para depois levá-lo à completa destruição na penitenciária onde fosse cumprir a pena em definitivo.
O lixo se acumulava cada vez mais pelos pátios e corredores, as celas eram completamente tomadas por imundícies; paredes caindo ou ameaçando desabar, esgotos por todos os lados fazendo jorrar resíduos fétidos e doentios; proliferação de insetos, pulgas, baratas, pernilongos, traças e ou outros pequenos depositários de graves moléstias; os gemidos de dor se espalhando, a dor em cada feição, a negação de ser humano em cada um; a violência gritante, as torturas cada vez mais constantes e com mais gravidade. A fome, a sede, a doença, a falta de medicamentos e de esperança.
Ratos convivendo com humanos num só habitat, como se amigos ou inimigos mortais fossem; ratos parecendo resto de gente, resto de ser humano se ratificando. Eram seres humanos ou bichos entocados aquelas sombras que se escondiam pelos cantos, pelas brechas, pelos esconderijos? Se um morria, humano ou bicho, por mais que os agentes fossem avisados, só eram retirados dali com luvas e máscara por causa do mau cheiro. Os agentes tinham sentidos, temor de doenças, cuidados no lidar com os bichos humanos. Estes não. Estes tinham de suportar sem contestar a dor e o odor do próprio sofrimento.
A agonia de Jozué era ainda maior porque aquela moça, futura advogada, que havia ido ali visitá-lo e proporcionar as maiores esperanças havia sumido. Lembrava que Carmen prometeu outras visitas, que voltaria ao local outras vezes para informar sobre o andamento do processo e sua defesa. Não sabia, contudo, o que tinha acontecido com ela, de sua morte. Ou do seu assassinato.
Se passava um dia e mais outro, sem que o agente lhe viesse avisar sobre a única visita que poderia ter, era como uma tortura psicológica, como vontade enlouquecedora de tê-la ali novamente à sua frente. Ora, sua mãe não viria mais, ninguém mais certamente se lembraria de sua existência. Então a única pessoa que podia ainda lhe alegrar o coração e passar um pouco de conforto estava demorando a voltar. Não sabia, mas ela já estava numa dimensão muito distante. Talvez voltasse para uma visita, quem sabe...
E muito pior se soubesse que ela havia morrido e com o seu falecimento ele começava a morrer um pouco também.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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