NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 70
Rangel Alves da Costa*
Em pé diante do espelho, Auto Valente olhou novamente a fotografia de Carmen, depois começou a rasgá-la lentamente, fazendo com que pedacinhos caíssem junto a seus pés. Deu mais um passo adiante e levantou a arma em direção à cabeça, na altura do ouvido. Só faltava apertar o gatilho. O espelho lhe mirava, ele mirava a escuridão, a escuridão chamava o seu nome.
Estava nessa posição, a um passo de tudo, quando sentiu uma feroz ventania estilhaçar a vidraça da janela em segundos. Um caco de vidro acabou sendo arremessado e acertou-lhe em cheio a mão que segurava a arma. Com o impacto do pequenino, porém pontiagudo objeto, a arma caiu e em seguida ele desabou também. Ora, mas o impacto do vidro na sua mão não teria o poder nem a força de fazê-lo desmaiar. O que teria sido?
Cerca de cinco minutos após despertou sentindo a mão dolorida e o sangue empoçado ao lado. Ao avistar a arma logo adiante e tanto sangue ali espalhado, passou a mão pela cabeça rapidamente para sentir se tinha tentado suicídio, se tinha se acertado, e se apressou para olhar no espelho. Não havia nada de anormal na sua cabeça nem no restante do corpo, a não ser a mão ferida e ainda sangrando. Contudo, como miragem repentina, veloz, inexplicável, pensou ter visto uma pessoa refletida, passando atrás, enquanto se observava.
Virou rapidamente a cabeça e não encontrou ninguém, nenhum vestígio de presença humana, apenas a ventania zunindo pela passagem aberta na vidraça estraçalhada. Porém tinha certeza que através do espelho viu alguma coisa passando por trás. Rapidamente procurou uma garrafa de uísque, derramou uma parte da bebida por cima do ferimento e colocou meio copo para servir a si mesmo. Entornou a bebida de uma vez só e pegou o telefone para avisar a faxineira que precisava dela ali com urgência.
Estava decidido a não atender telefonemas do deputado nem daqueles outros envolvidos e muito menos encontrá-los. Como não podia fazer mais nada por Carmen, talvez viajasse, talvez sumisse por uns tempos, o que realmente achava melhor a ser feito diante daquela situação toda. O problema é que nem podia fechar o escritório e nem passar a ideia para os comparsas que estaria fugindo. Estava numa situação difícil, sem realmente saber o que fazer dali em diante.
Quem verdadeiramente não sabia o que fazer era a família de Carmen. O acidente e a morte dela causaram consequencias terríveis para os seus pais e parentes suportarem. Desde o primeiro instante que soube do terrível acontecimento com a filha que a mãe estava sedada, pois ficou com ares de enlouquecimento assim que um médico fora solicitado para relatar o fato. Por todos os cantos, por todas as casas, quartos, becos e esquinas, pessoas desesperadas, sem querer acreditar e sem saber o que fazer, apenas desesperadamente agonizantes.
De causar estranheza era a situação em que se encontrava o seu pai, o senhor do agreste. O velho, tentando manter a todo custo seu porte inabalável, seu aspecto físico e comportamental inatacáveis, sofria mais ainda do que os outros tentando fingir uma dor verdadeiramente dilacerante. De olhar perdido no tempo, vagava de um canto a outro num silêncio sepulcral, apenas se afastando de todo mundo para ficar mirando a linha do horizonte, talvez outras linhas da vida e da morte.
Não quis tomar sedativos, calmantes ou qualquer coisa desse tipo. Seu remédio era suportar e aprender com o sofrimento, aprender com a dor e prosseguir adiante. Mas quanto aquela estrada estava difícil de ser suportada! Tanto espinho, tanto espinho! Desde que soube até a passagem do tempo, a única vez que abriu a boca pra falar foi para dizer que trouxessem o corpo para ser enterrada debaixo de um pé de baraúna existente ali na fazenda e que tudo fosse feito para o oferecimento de uma despedida digna a sua filha.
Os amigos, familiares, conhecidos e outros parentes mais distantes, resolveram não mais procurá-lo para dizer palavras confortantes e dissuadi-lo a entrar em casa porque sabiam que não havia jeito mesmo. O homem, com a sua tenacidade de sempre, estava realmente decidido a viver sua dor solitariamente, nos sombreados da natureza, debaixo dos pés de paus, olhando adiante e só enxergando o que somente ele sabia.
Mas sua mente também abria espaço para pensamentos outros e indagações. No dia anterior sua filha havia telefonado e dito que estaria chegando para conversarem também sobre um assunto muito importante, alguma coisa sobre uma injustiça que estava sendo cometida e que por isso mesmo precisaria de sua ajuda. Contudo, com o acontecimento tudo ficou sem maiores esclarecimentos, sem ele saber o que tanto intrigava sua filha, chegando ao ponto de ela dizer que necessitaria do apoio paterno, coisa que nunca havia feito antes.
Em sua homenagem, se as forças lhe permitissem mandaria alguma pessoa confiável procurar saber de alguma coisa que porventura a estivesse preocupando nos últimos dias. Se fosse coisa que pudesse dar continuidade, resolver em lugar dela, não mediria esforços na busca de solução. O problema é que a conversa havia sido muito ligeira e só sabia daquilo muito vagamente e que talvez fosse até coisa de advogada, coisa que ela já estava metida antes mesmo de se formar.
Se tal intento fosse levado adiante certamente encontraria muitas respostas, daria conhecimento a fatos que ele, naquela idade e reconhecido pela seriedade intransigente em tudo que fazia, não admitiria de jeito nenhum. Na sua concepção conservadora, sem combater as injustiças o homem não poderia falar em moral ou dignidade. O erro deveria ser combatido como bicheira ruim que ataca animal inocente. E por isso mesmo, triste daquele que soubesse que estava envolvido, fosse como fosse, na morte de sua filha.
Aliás, o deputado já havia conversado sobre isso em telefonema para Alfredinho Trinta Por Cento, o pai do verdadeiro e bandido Josué, ainda naquela manhã:
“Alfredinho, talvez tenha sido você quem encomendou a morte da mocinha, coisa que não duvido sabendo do que você é capaz. Mas não sei e nem quero saber quem nos deu a honra e o prazer de nos livrarmos dela assim tão rapidamente. O problema que me impede de festejar ainda mais, de ficar ainda mais feliz, é um medo danado, coisa de querer me fazer pelar, é imaginar se ao menos o pai da falecida souber quem está por trás da morte da menina. Se ao menos ele sonhar que tem o meu dedo, o seu ou até mesmo do juiz nessa história macabra, então não nos restará mais tempo de vida algum. Se ele souber manda matar e bem matado quem fez isso com sua filha. Deus queira que isso passe logo e seja tudo esquecido, pois do contrário não teremos sossego mais nunca na vida. Por isso cale essa boca maldita, faça de conta que nunca ouviu falar na defunta, que não sabe um tantinho assim dessa história. Para o seu e para o nosso bem...”.
Do outro lado Alfredinho prometeu de pé junto seguir o conselho do velho amigo, porém achou melhor falar de uma coisa que lhe atinava o juízo: “E esse advogado, o doutor Auto Valente, será que não tá agora cheio de remorsos por causa da morte dela? E já imaginou se esse pesar todo fizer com que tenha uma recaída e abra a boca pra falar o que não deve?...”.
Então o parlamentar deu um pulo, completamente espantado: “Você que dizer que devemos também?...”
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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