QUANDO A DOR ADORMECE
Rangel Alves da Costa*
Depois de tanto sofrer, o que restaria dos sentimentos?
Nasceu para a alegria, o amor, a felicidade, a vida em plena e completa efervescência, mas...
O sorrir que era tanto sorrir, a infância que era tanta esperança, os sonhos que faziam viajar, as janelas abertas para a brisa passar, tudo tão sublime, no entanto...
Primeiro viu a lua se esconder e a noite de medo surgir, depois viu o sol sair para a nuvem carregada se fazer tempestade, depois teve frio e calor, teve temor.
Um dia sentiu o outono nos seus olhos e sentimentos. As árvores nuas e as folhas jazendo adormecidas no leito de terra foram marcas tão entristecedoras que pensou em não mais voltar ao jardim.
Outro dia viu uma árvore apodrecida cair, um ninho desabar lá de cima, um passarinho voar sem rumo certo, uma dor, uma dor, um enternecimento sem fim...
Gostava de flores e mantinha um caqueiro na sua janela. Olhava a planta e via a vida, pensava na vida e imaginava ser como planta. E a rosa mais bela foi murchando e um dia morreu. Seria assim também com a vida?
Jogou fora a roseira morta e colocou no lugar uma plantinha de plástico, linda demais e parecendo eterna. Não demorou muito e o plástico perdeu a cor, a rosa também murchou, ficou velha e enrugada. Seria assim também com a vida?
Não tinha mais saia rodada, não tinha mais laço de fita, guardou a boneca de pano e a casinha de brinquedo. Encontrou uma agenda e começou a pensar o que escrever ali e primeira palavra que rabiscou foi amanhã.
Todos os dias escrevia uma coisa nova, mas nada que lhe desse qualquer satisfação, pois queria anotar uma coisa bonita e só lhe vinha amanhã, amanhã e amanhã...
Mas por que só me vem esse amanhã? Ficou uma semana sem escrever nada até que um dia descobriu o que seu amanhã queria dizer. E então escreveu uma palavra nova: hoje.
Em seguida ficou mais fácil de imaginar frases completas: hoje afasto da dor a alegria de amanhã; hoje vivo toda essa tristeza para acordar sem sombras; hoje vou abrir uma porta e amanhã conhecerei o mundo.
Mas a agenda só trazia tristeza e então resolveu que o grande diário de sua vida não seria noutro lugar senão no pensamento. Então começar a imaginar coisas boas, belas, bonitas, coisas que logo eram desmentidas pelo olhar.
Tudo ideia. A natureza ideia de pujante força, os dias e as noites ideias de coisas boas acontecendo, o trabalho uma ideia de dignidade, o amor uma ideia de compartilhamento. Mas a realidade...
As pessoas tão belas e caminhantes, por que praticam tanta maldade? O mundo parecendo ter sido feito para viver em perfeita ordem, por que de repente tanta catástrofe, terror e medo? O corpo com tanta saúde, por que num instante a doença e a morte?
Mas não podia desacreditar na vida, no mundo, nas pessoas, em nada. E soube do irmão contra o irmão, da defesa da honra através do sangue, da paz buscada na guerra, do alimento que é tirado da boca do faminto, do povo que erra e procura justificar.
Fechou a janela e a porta, mas ouviu os gritos da violência lá fora, a televisão mostrava cenas estarrecedoras, lia jornais e ficava com as mãos sujas de sangue. E o vizinho do lado, do outro lado, da frente e detrás, todos batiam na sua porta para inventar maldades.
Fechou a casa e saiu. Não sabia pra onde ia, mas resolveu caminhar por aí em busca de qualquer resposta para tanta aflição. Entrou na igreja e lembrou que se quisesse manter a fé tinha de ser na igreja do próprio coração.
Queria saber por qual caminho seria mais fácil encontrar a felicidade. Ninguém sabia e ninguém ensinou, pois todos já estavam voltando dessa procura.
E nada mais lhe fazia sofrer, trazer tristeza, angústia e aflição. Percebeu que assim mesmo era a vida, que tinha de acostumar. Até mesmo ser insensível a tudo, pois a dor dolorida demais um dia entorpece, adormece as pessoas e os seus sentimentos.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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