NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 47
Rangel Alves da Costa*
Carmen recolheu o papel, leu novamente e achou até criativa a ameaça: “Cuidado mocinha. Mexer em casa de maribondo faz mal à saúde. Quem é amigo adverte”. Resolveu guardá-lo como recordação e lembrança. Porém lembrança que estava sendo vigiada, acompanhada, que estavam seguindo os seus passos, que sabiam onde estava indo. Ao menos eles tiveram o cuidado de mandar um alerta, pensava ela, quase sorrindo, enquanto manobrava o veículo.
Tinha vontade de sorrir, mas sabendo que era uma situação gravíssima, dramática até. O bilhete havia sido o início de ameaças mais duras, talvez; aquele recado simplesmente queria dizer que ou fecha a boca, para de investigar e faz de conta que não viu nada nem sabe de nada ou poderá acontecer o pior. Se era assim então estava correndo perigo, principalmente porque não tencionava esquecer nada daqueles absurdos que estavam ocorrendo.
Enquanto pessoa restava tomar mais cuidado consigo mesma, evitar ambientes como aqueles, uma praça sem grande movimentação e propícia a esconderijo de pessoas com más intenções. Ainda que no veículo seria muito perigoso se dirigir a determinados lugares. Mas haveria de dar um jeito nisso tudo, e uma das principais atitudes a tomar seria brevemente visitar a família e relatar ao pai tudo o que estava acontecendo, desde os fatos em si até as ameaças surgidas.
Contudo, outro problema indubitavelmente havia surgido e dizia respeito ao seu endereço. Havia saído do apartamento e procurado abrigo temporário junto a uma amiga para evitar exatamente que soubessem onde morava, mas agora tinha certeza que já haviam descoberto. Haveria também de dar um jeito nessa situação e o mais rapidamente possível, mas fato é que não poderia ficar se mudando de um lado a outro só porque os inimigos estavam à espreita. Se tinha de enfrentá-los de qualquer modo, então não adiantava muito estar mudando de endereço.
Já tendo escurecido, parou o carro diante o endereço da amiga e desceu cuidadosamente, olhando de um lado a outro para ver se ali se encontrava algum suspeito, ou algum movimento estranho ou qualquer coisa que pudesse afligir seus temores. Ainda espalhando olhares por todos os lados, subiu rapidamente a calçada quando um veículo se aproximou lentamente e quase parou onde ela estava.
Agora parada, olhando assustada pra trás avistou somente alguém baixando o vidro e lhe acenando. Então imediatamente avistou um canalha, talvez o cabeça daquilo tudo, pois quem avistou não era outro senão o Deputado Serapião Procópio com um sorriso safado no rosto enrugado e gesticulando rapidamente. Depois levantou novamente o vidro e seguiu adiante. E nesse momento teve a certeza que ali estava mais um aviso.
Estava cansada demais para perder sua noite repensando nos acontecimentos recentes. Depois do banho nem quis jantar, comeu apenas uma fruta, saiu para guardar o carro e depois se trancou para organizar uns papeis e fazer algumas anotações. Nem música clássica, como gostava de ouvir sempre, principalmente Tchaikovsky, Offenbach e Bach, se dispôs a escutar, a não ser uma, pois não deitava antes de ouvir Jesus, Alegria dos Homens, de Bach.
Assim, deitou entre a melodia clássica, voando por catedrais, e o pensamento de que no dia seguinte havia marcado com a mocinha, a filha da finada Glorita, uma visita a Paulo no presídio de passagem. Como havia acontecido com Jozué, outros momentos de angústia, dor e sofrimento. Que sina, meu Deus, ter de avisar a esses pobres coitados, que já estão vivendo em situação tão difícil, sobre a morte de suas mães. Talvez Jozué tenha aceitado a morte súbita de sua mãe, o ataque cardíaco sofrido por ela, contudo com relação a Paulo seria mais complicado, vez que vitimada de forma tão trágica. Como ele reagiria só ficaria sabendo no dia seguinte.
Acordou disposta e depois de se ajoelhar perante o seu oratório ficou espiritualmente ainda mais forte. Até desconhecia esse poder de superação tão rapidamente. E depois das nove horas seguiu caminho em direção ao Quase Paraíso, local de moradia da família agora ainda mais reduzida de Dona Glorita. A mocinha, ficando alguns dias sem trabalhar, deveria estar lá esperando para visitar o irmão. Nunca havia encontrado coragem de visitá-lo na penitenciária, mas agora, diante do episódio, não havia como deixar de avistá-lo naquele mundo que não era o dele.
A mocinha ainda em lamentos parecia não ter dormido durante a noite inteira. Carmen exigiu que ela mudasse aquele semblante, que tomasse um banho reconfortante e nem pensasse em chegar à penitenciária como se ainda estivesse segurando a alça do caixão de sua mãe. Era difícil, porém tinha que mostrar forças para não complicar ainda mais a situação do seu irmão. E ao dar a notícia, fazer de tudo para não repassar a ideia de que o mundo também havia morrido. Pelo contrário, agora é que, em homenagem a ela, lutariam ainda mais pela sua libertação.
Diante daquela situação difícil, Carmen decidiu então que seria melhor que a visita fosse a mais rápida possível. E assim partiram e chegaram ao presídio de passagem já depois das onze horas. Os mesmos procedimentos burocráticos de sempre, constrangimentos em nome da segurança, mas enfim avisaram que ele não demoraria a chegar, porém pediram algo que não é praxe ser feito em situações como tais. Eis que o diretor chegou até onde as duas estavam e pediu que tentassem descobrir o que Jozué estava sentindo, pois nos últimos dias o mesmo estava se comportando muito estranhamente.
Foram encaminhadas até o local da visita e não demorou muito para ele ser anunciado. Assim que entrou e viu a irmã, foi logo correndo em sua direção e num abraço lacrimoso foi dizendo “Aninha, minha irmã, Aninha”. Esta, angustiada demais, não conseguia nem responder, apenas chorar e se envolver no apertado abraço.
Quando se apartaram e ela mirou o irmão quase grita de dor. Como ele estava esquisito, diferente, magro, com uma cor que não era a sua. Aproximou-se novamente, deu-lhe outro abraço e perguntou se ele estava bem, se estava sentindo alguma coisa, se estavam lhe judiando ali, por que estava tão magro, por que... E se afastou quando ele, ao invés de responder, disse:
“Aninha, vocês me mandaram o meu passarinho errado. Meu azulão é vermelho e vocês mandaram um azulão azul. Por que Aninha?”.
Meu Deus do céu, será que meu irmão está enlouquecendo? Foi a pergunta que a mocinha se fez antes de colocar o braço no ombro de Carmen para não desmaiar.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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