NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 68
Rangel Alves da Costa*
A violência do capotamento do veículo foi tamanha que de cima da pista, onde logo outros veículos e curiosos pararam aos montes para observar as consequencias da tragédia, só dava para se avistar uns escombros retorcidos lá embaixo, num local de dificílimo acesso, principalmente porque continuava chovendo.
As chuvas, repentinamente mais fortes, impediram os focos de incêndio de se alastrar, bem como banhavam o belo corpo da moça jogado por cima de flores do campo. Cena tão terrivelmente bela, num expressionismo medonho, mostrando Carmen, aparentemente sem ferimento algum, jazendo ali estirada em meio às flores, morta. Difícil imaginar, mas um buquê estava em suas mãos.
O corpo em posição voltada para cima denotava apenas uma jovem ali deitada sobre as flores rasteiras, crescidas na terra, na jardinagem do tempo. De cor alva como ela era, a chuva caindo por cima fazia parecer um pedaço de nuvem estendida na terra, molhada, talvez tendo vindo buscar na fonte o seu anjo mais belo. E não se sabe como nem porque, dessas coisas inexplicáveis que acontecem, mas de repente pétalas foram caindo com a chuva e o local onde estava se transformou num triste canteiro de pedaços de flores.
Verdade é que ainda antes da meia noite do dia anterior dois estranhos já rondavam as proximidades de sua residência. Pelos cantos, nas esquinas, embaixo de árvores frondosas, em qualquer lugar que servisse de esconderijo, ficaram olhando em direção ao prédio, principalmente o local de entrada da garagem. Daqueles dois, um era hábil no arrombamento de cadeados, portas e todos os tipos de passagem; o outro um mecânico trambiqueiro especialmente contratado para tornar o veículo numa arma de morte.
Quando passou da meia noite e viram que pelos arredores tudo estava deserto, nenhum sinal de repentina movimentação, e a frente da garagem era escurecida o suficiente para o arrombador iniciar seu trabalho, então esperaram mais um pouco, até chegar acima de uma hora da madrugada para dar início aos medonhos trabalhos.
O arrombador se dirigiu para uma ponta da rua enquanto o mecânico se encaminhou para a outra. Primeiro o mecânico pegou sua sacola velha e suja de graxa, colocou umas papelões e uma colcha de dormir esburacada e imunda, colocou tudo no ombro e foi andando feito mendigo até a frente da garagem. Ali, deitou suas coisas, espalhou tudo pelo chão e se fez de pedinte errante que não tinha onde dormir e qualquer lugar lhe servia de cama.
Deitou, ficou olhando de lado a outro, esperando o outro chegar sutilmente para começar a estourar os cadeados. Assim, o arrombador foi se aproximando todo esgueirado pelos lugares mais escuros e quando chegou ao local e olhou de perto para o tamanho dos cadeados balançou a cabeça e resolveu que seria mais prático e rápido abrir uma porta que havia ao lado, porém fazendo parte da mesma garagem. Com a destreza de marginal que tinha, fez isso em dois minutos.
Com a porta aberta, apenas encostada para quem passasse não perceber nada de anormal, se deu por satisfeito e decidiu ir embora, conforme o combinado. Como sinal também combinado, jogou uma pedrinha no mecânico deitado logo ali em frente e seguiu furtivamente da mesma forma que havia chegado. Dado o aviso, agora era a vez de o mecânico começar a fazer sua parte, começar a agir.
Já sabendo a marca, a cor e todas as características do carro, nem precisou do outro para abrir o capô, que é a cobertura que protege o motor do veículo, bem como a porta da motorista, local próximo ao pedal do freio. Em seguida, tendo ferramentas à mão ou usando apenas de sua experiência manual, foi mexendo aqui e ali, folgando parafusos, mexendo coisas do lugar, deixando o sistema de freios em perigosa situação.
Sabia de cor e salteado sobre o funcionamento dos freios de carros: o tambor de freio, as sapatas, as lonas, o disco de freio, o hidrovácuo, o cilindro mestre, pedais, óleo de freio etc. Daí que passou a mexer em pivôs, cilindros e pastilhas. Contudo, teve o cuidado principal de mexer na hidráulica dos freios, nos pistões dos fluídos, provocando um pequeno vazamento que mais tarde traria pesarosas consequencias. E por que se preocupou tanto em dar início ao vazamento?
Simplesmente porque se houver um vazamento e este for lento, eventualmente não haverá fluido suficiente para preencher o cilindro de freio e consequentemente este não funcionará corretamente quando o motorista colocar o pé no pedal. Contudo, se ao longo da viagem o pequeno vazamento for aumentando e se transformar num vazamento maior, então chegará o momento em que todo o fluido terá esguichado pela vazão e haverá total perda dos freios.
Foi isso que aconteceu com o veículo de Carmen. O mecânico trabalhou maldosamente para condicioná-lo totalmente ao acidente. Certamente havia sido informado que ela viajaria e então foi mais fácil até prever com quantos quilômetros o freio deixaria de atender aos impulsos no pedal e o carro perderia inteiramente o controle.
Ao sair cedinho da garagem com o carro, não demorou muito para que ela sentisse algo diferente com a direção do veículo, que de vez em quando deixava de atender ao seu comando. Contudo, somente quando já estava na pista fora da cidade começou a perceber que o carro fazia um barulho estranho ao pisar no freio, mudava de direção puxando para o lado direito, as rodas tremendo ao colocar o pé no pedal. Porém achou que poderia resolver aquilo tudo na volta, quando mandaria providenciar uma revisão geral.
Não conhecia nada de veículos, por isso mesmo nem imaginou que aqueles pequenos problemas lhe custariam, mais adiante, a vida. Com a pista molhada então, bastou tentar descer a ladeira lentamente para que o carro seguisse direto, violentamente, em direção ao abismo.
Os responsáveis ou responsável pelo acidente, que logicamente não era apenas o mecânico contratado para fazer o serviço, brevemente veriam o resultado do seu intento estampado nos jornais. O mal, como se percebe, havia subjugado o bem. Mas até quando?
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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