NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 55
Rangel Alves da Costa*
Tendo em mãos todos os dados processuais dos dois, bem como suas qualificações e identificações, ainda nessa noite Carmen elaborou os requerimentos a serem encaminhados à vara criminal onde os processos ainda tramitavam. Na manhã seguinte voltou à penitenciária de passagem e pediu que um funcionário fosse até eles e providenciasse suas assinaturas.
Ficou aguardando e naquele momento torcia para que o diretor não aparecesse, pois não haveria tempo para conversas mais demoradas. O agente demorava mais do que o esperado para retornar e quando chegou, agitado, demonstrando nervosismo, informou que com relação a Jozué não houve qualquer problema para que se assinasse, mas quase não consegue quando procurou Paulo.
Fato é que o rapaz foi procurado por todos os lugares, todas as alas, nos cantos e recantos mais escondidos, escuros, apodrecidos e arrepiantes ambientes, mas nada de ser encontrado. O agente prontamente mobilizou outros colegas e todos se apressaram na diligência. O problema é que ninguém dava uma informação convincente, realmente indicativa de onde ele poderia estar.
Um dizia que na última vez que o tinha avistado ele estava deitado nos fundos de um corredor; outro que ele estava tentando, à moda das aranhas, subir pelas paredes; ainda outro o viu abrindo um tonel de lixo para catar comida podre lá dentro. Contudo, um velho presidiário, alguém que já se achava misturado ao lugar, parte inafastável daquele mundo desumano, já esquecido por todos e consciente que jamais sairia dali, chamou um agente e disse que talvez ele pudesse ser encontrado dentro de uma daqueles tonéis que serviam de depósito de lixo. Como se tudo ali não fosse um execrável depósito de lixo humano, de restos de seres humanos.
O rato, o bicho, o resto de gente, o homem/bicho, a pessoa que se esvaía na sua existência de humano para, num passo, se transformar de vez num ser rastejante, estava realmente lá. Em meio a muitos tonéis revirados e restos e dejetos espalhados pelos arredores, havia um onde o animal se escondia da presa. Assim, quando o agente começou a revirar um tonel que estava de cabeça pra baixo percebeu que ali havia muito mais do que um vazio apodrecido. Paulo estava ali, o bicho.
Tirou-o de lá, arrastou-o bruscamente pelo chão e gritou para que ligassem a torneira de água mais forte que existisse e levasse até ali. Mandou que amarassem os pés e as mãos dele e em seguida direcionou o jato por todo o corpo, como se a incrível força da água tentasse desfigurá-lo completamente. Quanto mais se movia desesperado pelo chão, se esforçando para não ser atingido no rosto, mais o agente aumentava a pressão e o alcançava violentamente. Depois desligou a torneira, deu uns cinco chutes no corpo estendido e mandou que o levantasse e levasse até outro local.
Perto de uma construção em cimento, colocou a folha em cima, se voltou para um Paulo inerte e ainda assim apreensivo, deu-lhe um bofetão na cara, jogou-lhe um pano escurecido tomado de sujeira para enxugar as mãos e depois o segurou pelo braço, puxando-o em direção ao papel. “Assine aqui. Assinando aqui amanhã você já vai morrer noutro lugar, no meio do mundo. Vá, anda logo!”. E talvez não soubesse nem como, mas acabou assinando exatamente no local indicado.
Documento assinado, o passo seguinte foi ser empurrado com violência e se estatelar por cima de porcarias. Tendo à mão a folha assinada, o agente saiu do local, mas não sem antes gritar para outros colegas que agora ensinassem a ele como se trata bicho que se esconde debaixo dos tonéis. E sem gritar, sem dizer nada, sem procurar se defender dos ataques, Paulo foi castigado e torturado como jamais havia sido naquele lugar.
Sem saber nada disso, e logicamente porque o agente não comentaria nada relacionado ao modo como a assinatura havia sido conseguida, Carmen simplesmente agradeceu e saiu de lá apressada, num raro contentamento que se transformaria em dor se ao menos sonhasse com o que estava ocorrendo com o seu amigo lá dentro naquele momento.
Chegou ao fórum, xerocou em várias vias os requerimentos, protocolou-os devidamente e retornou ao centro da cidade. O destino agora seria o escritório de um amigo conseguido no ambiente universitário, pois ele, além de atuante e renomado advogado criminal, era também professor na esfera processual penal.
O Dr. Céspedes Escobar era um velho militante na seara criminalista, reconhecido pela atuação em casos famosos. Contudo, sendo muito criticado pelo seu modo diferente de advogar, pois ao tempo que defendia os acusados dos crimes mais chocantes, também era máximo defensor do respeito à vida humana, dos direitos fundamentais e da dignidade do ser humano. Por maldade e inveja pelo seu modo de proceder, era chamado nos corredores dos fóruns de “doutor cara e coroa”.
Mas ele não se importava com nada disso. Pelo contrário, até brincava quando lhe chamavam pelo nome verdadeiro e dizia que talvez tivessem esquecido seu outro nome. Na universidade todos se encantavam com suas aulas, num misto de retórica forense e oratória de mesa de bar. Ensinava como se estivesse abrindo as páginas de um código ou livro doutrinário, misturando o direito penal com o processo penal, indo de casos reais aos procedimentos forenses como os mesmos casos tramitariam.
Carmen sempre se mostrou admiradora de sua inteligência, perspicácia e profundo conhecimento jurídico. Entretanto, imaginava aquele professor como determinados advogados que estão em extinção, aqueles que agem sem alarde, sem procurar mídia para se mostrar, apenas tecendo com inteligência e sucesso a defesa dos seus clientes. Por isso mesmo decidiu procurá-lo para colocá-lo a par da situação, saber o que poderia ser feito naquele momento e quanto custaria chamar para si a defesa dos dois naquele estágio do processo.
Chegou ao escritório simples e teve apenas que bater à porta. Esperava encontrar algo suntuoso, senão luxuoso, principalmente porque naquele endereço estaria um dos endereços advocatícios mais famosos. Contudo, o que encontrou foi de uma simplicidade tamanha que nem secretária existia. Após uma antessala com um birô vazio, a dependência de trabalho bem ampla, com estantes por todos os lugares, livros que chegavam ao teto, arquivos e papéis espalhados por cima da imensa mesa de madeira antiga, envernizada, bonita. E sentado numa cadeira também antiga, com aparência do próprio dono, o amigo professor e advogado.
“Mas que prazer em recebê-la no meu escritório, minha aluna predileta. Melhor dizendo, minha ex-aluna, vez que logo mais já será minha concorrente, e tenho certeza que dessa vez irei mesmo para o vestiário mais cedo. Mas se achegue mais, sente aí. Mas que novidade agradável nessa manhã onde estava suportando dialogar com flagrantes, acusados, suspeitos, presos, reclusos, apenados e toda uma colcha de crimes. E todo mundo inocente, pois isso dizem sempre e até juram pelas pobres almas de suas mães...”.
E sorria de se acabar, como se fosse um modo agradável de dar boas-vindas a Carmen.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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