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domingo, 16 de outubro de 2011

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 62 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 62

                                          Rangel Alves da Costa*


Por essa nem Carmen nem o Dr. Céspedes Escobar imaginaram, mas a verdade é que assim que tomou conhecimento dos requerimentos juntados aos autos, tanto da revogação como da outorga de mandatos a outro advogado, o juiz telefonou preocupado para o seu comparsa naquela falcatrua toda, o Dr. Auto Valente.
“Doutor Auto, além de lembrar que faltam poucos dias para chegar em nossas mãos, na minha e do promotor, aquela mesada acertada, telefonei principalmente para relatar um fato que certamente nos deixa apreensivos. Você não soube segurar os processos em suas mãos, agindo de sua inteligência corruptora para continuar enganando até transitar em julgado as sentenças e aqueles dois serem logo enterrados vivos, agora a situação complicou. E complicou porque estou aqui à minha frente com documentos que habilitam um novo advogado para atuar nos dois casos. Se saírem aqui da minha mesa certamente o Dr. Céspedes Escobar, é esse o nome desse inconformado, dará carga nos processos e esmiuçará de cabo a rabo para aprontar os recursos. Se isto realmente for feito, então problemas evidentemente irão surgir, pois em cada folha encontrará absurdos, falsificações, omissões e toda aquela nojeira que aprontamos no intuito de condená-los. Até um recém formado se espantaria com o que foi feito no processo, veria que ele não tem validade jurídica alguma, que é completamente nulo. Mas enfim, o papel forte sempre fala mais alto. Agora vou lhe falar sobre o problema mais grave, que diz respeito ao que ele poderia fazer diante do que encontrasse. Fora o que ele já deve estar sabendo através de quem o contratou, fatos que envolvem nós todos, além disso não pensaria duas vezes em nos representar, eu e o promotor, perante as corregedorias competentes. E isso não poderá jamais acontecer, pois, como você já deve estar sabendo, com a morte do Desembargador Pascácio Dobrez serei o próximo escolhido para integrar aquela mais alta corte do judiciário estadual. Ao menos lá no tribunal, e que pelo amor de Deus nenhum daqueles velhacões nos ouça, o que pesou realmente na escolha foi minha honra judicante, minha nobreza na função da magistrada, minha integridade sentenciante e o meu largo, extenso e reconhecido saber jurídico. É isso, Dr. Auto, desembargador, essa palavra tão bela e cheia de poderes, que sempre abre as portas para o poder incontido e desmedido, é isso que logo serei: desembargador...”.
Sorrindo do outro lado, com vontade de gargalhar efusivamente, o advogado engasgou, mas conseguiu falar:
“Sempre disse que o seu lugar era ali, como desembargador, julgando no tribunal, local onde poderá fazer muitos acertos e negociatas, cobrar logicamente muito mais do que cobra aí nessa vara por cada sentença. Lá certamente o preço é quadruplicado, quintuplicado, e por aí vai, dependendo do pano pra manga que tenha o contendor. Parece que já estou vendo, a cada pedido de vista um carro novo, a conta mais robusta, um sítio, um iate. Algum dia me conte quantos milhões escondem por debaixo daqueles tapetes caríssimos, local de pisada da fina flor do saber jurídico e da maracatuia, da malandragem, das vênias venalidades. Logicamente que não todos, pois a maioria dos membros daquele tribunal é realmente digna e honrada, mas o problema é que esses velhinhos parecem viver em tempo de morrer ao ver tanta coisa errada, tanta brincadeira maldosa de se fazer justiça, tanta injustiça tomando o lugar do direito, e não poder fazer nada. Ademais, têm que suportar pressões de todos os tipos e ainda serem fortes o suficiente para não se deixar contagiar pelo mal que enoja seus colegas de beca, das mais brilhantes e ricas vestes talares. Oh, quanto luxo pra enganar os bestas. Bem assim é na igreja, com aqueles paramentos todos e tanta safadeza nas sacristias e adjacências. Mas depois conversaremos sobre isso, pois urge saber o que pretende fazer agora, vez que surgiu no nosso caminho esse intransigente do Dr. Céspedes. E então?”
O juiz foi rápido na resposta: “Para o bem ou para o mal, pois jamais saberia o que se passa na cabeça daquele advogado briguento, vou adotar esses dois processos. É isso mesmo, vou adotá-los. Gosto tanto deles que daqui do meu gabinete vão diretamente pra casa do papai, ficar lá num cantinho, escondidinhos, esquecidinhos, até o prazo recursal passar. Quando transitar em julgado expulso eles de casa como dois menores infratores, pra se perderem no meio do mundo...”. E sorriu às esturras, desbragadamente, comemorando vitórias, vilezas e vilanias.
Ao desligar o telefone, Auto Valente estava ainda mais impressionado com a astúcia do magistrado, com aquela capacidade de fazer o errado de maneira tão bem feita, com sua destreza em fazer desaparecer os autos. E ele estava certo, pois era seu futuro que estava em jogo. Principalmente o futuro dele, e somente isso, pois pouco estaria se importando com o que acontecesse com os outros, sobretudo quando fosse de vez para o tribunal, ser ilustre desembargador, insigne julgador, nobre jurista, ímpar, imaculado, no mais alto nível de honradez e probidade. Como essa vida é mentirosa, como os homens se deixam enganar, como sabem pintar de ouro a face da justiça e deixam por dentro o mal e a podridão...
Ainda pensando nas palavras do magistrado, colocou um aspecto mais deprimido no rosto, até mais entristecido e se voltou mentalmente para imaginar outra dura realidade, talvez mais difícil do que aquela realidade dos homens. E essa realidade afligindo diretamente o coração, agora cada vez mais certo de que estava se tornando impossível obter ao menos um olhar amoroso de Carmen. Bastava esse pensar e tudo lhe doía numa ferocidade estonteante. O problema é que dava razão ao impossível, ao veementemente negado, vez que ele mesmo culpado por tudo aquilo ter tomado esse caminho difícil, esse distanciamento sem retorno para qualquer encontro.
Amava Carmen sim, e com o maior amor que pudesse existir de um homem perante uma mulher, ainda que ela nem sonhasse ser parte dos seus sonhos e aflições. Como poderia desejar um sorriso, um olhar, uma promessa de beijo ou de abraço, se ele, com suas ações e atitudes abjetas, suas mentiras e falsidades, havia afastado ela de sua presença? O pior é que não somente impondo essa distância, mas também fazendo nascer nela o ódio, o nojo, a repulsa. Mas a amava, amava sim, e disso parecia não poder fugir, por mais que o seu lado ainda humano já o alertasse de que é impossível encontrar o amor aonde semeou o ódio.
Mesmo assim ainda a procuraria naquele mesmo dia. Logicamente não para ficar ajoelhado aos seus pés, pedir perdão por tudo que tinha feito nem jurar eterno amor acompanhado de seresteiros, mas porque precisava muito conversar com ela, alertá-la sobre possíveis perigos que estaria correndo, sobre certas maldades que tencionavam fazer contra sua pessoa, procurar fazê-la desistir dessa preocupação com os dois presidiários. De certa forma, isso também seria uma prova de amor. Ao menos era isso que pensava.
Já sabendo como poderia encontrá-la, com tais objetivos parou o carro defronte ao endereço e ficou aguardando que aparecesse.

                                                       continua...







Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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