NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 67
Rangel Alves da Costa*
Com o carro na garagem do prédio, de três idas e vindas Carmen Lúcia conseguiu enfim arrumar sua bagagem no porta-malas e ainda espalhar muitas coisas pelo banco traseiro. Subiu novamente, beliscou uma bolacha, tomou um copo de suco de laranja com acerola e foi verificar se não havia esquecido nada no quarto.
Ao entrar, percebeu a vela ao lado do oratório apagada e disse a si mesma, intrigada, que era a primeira vez que isso acontecia. Reacendeu no local protegido de qualquer perigo de cair e provocar incêndio e ao se voltar percebeu que a cortina da janela se agitava como se uma ventania desse solavancos, quisesse retirá-la. Novamente intrigada, lembrou que havia fechado a vidraça e, portanto, não devia estar agora aberta e com o vento soprando daquele jeito.
Correu até lá para fechar novamente e olhou rapidamente para o tempo lá fora. Ao olhar pra cima, em direção ao firmamento, avistou um fenômeno que jamais imaginara enxergar nas nuvens. Era inacreditável, impressionante, mas via nitidamente a palavra NÃO escrita no rastro da nuvem. NÃO, era NÃO mesmo que estava escrito ali, mas não o que e por quê? Perguntou-se.
Se continuasse se perguntando e fizesse isso mil vezes, ou numa simples indagação mais apurada, talvez tivesse encontrado a resposta, talvez tivesse imaginado o que aquele NÃO queria dizer, e logo saberia que os recados superiores, misteriosos, são dados pelas formas mais inesperadas e passaria a ver aquela inscrição como um aviso, como algo dizendo que não viajasse. E era essa mesma a mensagem escrita abaixo dos céus.
Não havia ainda amanhecido completamente nem o sol começado a se alastrar quando abriu a porta do carro para seguir seu rumo, mais adiante saindo da capital e entrando por estradas asfaltadas em direção ao agreste, terra do seu senhor. Sua expectativa era que não chovesse, que as pistas estivessem sem maiores problemas e o trânsito fluindo normalmente.
Contudo, assim que saiu da garagem e não dirigiu nem por três quarteirões, olhou pra cima e nuvens negras, carregadas, começaram a surgir. Passou a ter certeza que daquela vez, como sempre, o serviço de meteorologia havia falhado. E não demorou muitos os pingos começaram a cair, barulhando por cima do teto e encharcando as vidraças do carro. Achou que seriam nuvens passageiras e seguiu em frente, com o limpador de para-brisa sempre ligado.
Quando já havia saído da zona urbana e entrado nas estradas de rumo certo, naquelas que cortariam chão até chegar às distâncias do seu lugar, sentiu que as pancadas de chuvas haviam diminuído, porém mantendo-se numa constância que encharcava a pista e fazia com que dirigisse com faróis acesos e redobrado cuidado. Quase não se enxergava nada em frente, os outros veículos passavam perigosamente, o transtorno era inevitável.
Mais adiante resolveu parar por uns cinco minutos num posto de combustíveis para abastecer e tomar um café com leite. Dentro da lanchonete, em pé no balcão, assim que ia colocar açúcar no café viu um menino por trás de uma vidraça lá fora, acenando apressadamente em sua direção, como se a conhecesse e tivesse algo muito importante a falar. A estranheza foi absoluta, até pensou em não dar atenção na naquele instante. Imaginou ser apenas mais um desses meninos pedintes que vivem esmolando em beiras de estrada.
Resolveu realmente não dar atenção e o garotinho desapareceu. Contudo, assim que estava se preparando para abrir a porta do veículo, eis que ouve uma voz e se vira rapidamente. Era ele, de cabeça baixa, cabelos louros e cacheados, num aspecto de criança entristecida e que estava pronta para pedir esmola. Mas o que ouviu de sua boca foi algo totalmente diferente:
“Sua família pode receber a sua visita noutro fim de semana. Está chovendo, a pista está molhada. Espere a chuva passar e volte pra casa. Hoje não é o dia pra essa viagem, pois ainda não chegou o seu dia de viajar. Eu até estava lá na nuvem dizendo a você. Você me viu? Eu disse não e agora estou aqui para dizer sim, que espere a chuva passar e depois volte. A sua família ficará muito mais contente se a senhora resolver fazer essa visitar outro dia...”.
Sem prestar o mínimo de atenção ao que o garotinho dizia, Carmen entrou no carro e de lá, quando a chave já estava ligada, estendeu o braço com uma moeda para colocar na mão do menino. Este estendeu a pequenina mão, porém Carmen não encontrou nada onde pudesse colocar o dinheiro. Havia somente a mão, o menino, o corpo do menino, mas nada de carne e osso que humanamente se tocasse.
Assustada, acelerou rapidamente e retomou a pista e nem pôde ouvir quando o garotinho disse: “Então, até. Nós nos encontraremos brevemente!”. Depois foi perdendo a forma humana, tomando aspecto de anjo, batendo a asas e voando, subindo em direção às nuvens, cruzando desconhecidos caminhos em direção aos céus.
Somente quando ia numa parte mais íngreme da estrada é que Carmen começou a retomar mentalmente das palavras dele, começou a se assustar, a entender o que poderia ser aquela aparição e o que realmente ela queria dizer. Completamente amedrontada, quando se viu numa perigosa descida e resolveu que era o momento de voltar, com a pista molhada não conseguiu manter mais a direção do veículo.
Sem o freio funcionar, com o carro já ziguezagueando na pista, sem conseguir segurá-lo por cima das águas perigosas, soltou um grito horripilante quando viu um abismo à sua frente. O carro seguiu adiante, ficou solto no espaço e depois rolou ribanceira abaixo, capotando seguidamente. Oh, não destes ouvidos aos sinais Carmen e, como disse um dia Fernando Pessoa, A Morte Chega Cedo:
A morte chega cedo,
Pois breve é toda vida
O instante é o arremedo
De uma coisa perdida.
O amor foi começado,
O ideal não acabou,
E quem tenha alcançado
Não sabe o que alcançou.
E tudo isto a morte
Risca por não estar certo
No caderno da sorte
Que Deus deixou aberto.
Somente destroços e um corpo jogado adiante, muito adiante. O corpo de Carmen. Morta.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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