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quinta-feira, 27 de outubro de 2011

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 73 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 73

                                          Rangel Alves da Costa*


Um ataque fulminante, coisa de segundos, e o velho combatente das injustiças no seio da justiça estava morto. O enraivecimento havia sido grande demais, a irresignação viajara pelo sangue tornando-o turbulência, aflorando a ira, a revolta, a indignação, o ódio, tudo se avolumando dentro daquele desgastado corpo que teimava em não aceitar uma judicialização da iniqüidade igual aquela.
Alegar erro na publicação e com isto retroagir o prazo para prejudicar não existia em sociedade de direito alguma. O prazo retroage, porém para beneficiar, do contrário caracteriza-se como uma afronta ao mundo do direito e às relações jurídicas. Contudo, o que o velho insurgente viu, absurdamente, foi a justiça curvada ao império da corrupção e da deslealdade. E o pior é que com acolhida da corte estadual, através do próprio corregedor, tentando justificar o injustificável, e certamente pactuando dos erros do futuro par.
Tudo isso foi demais para o advogado, que já saiu do tribunal praticamente fora de si. Cair ali na rua morto seria uma consequencia lógica diante do caso, como de fato ocorreu. E junto com o corpo estendido no chão também morria qualquer esperança de defesa dos dois inocentes, qualquer tentativa de interposição de recurso. A partir de então, sem que ninguém juridicamente olhasse para aquela situação e lutasse para que o erro fosse reparado, os dois estavam entregues à própria sorte. Estavam nas mãos de Deus.
Não demorou muito para que o boato sobre a morte do advogado ali diante do tribunal chegasse aos ouvidos do corregedor. Tão-somente admirado com a rapidez do infortúnio, vez que o homem havia saído de seu gabinete há pouco tempo, apenas pegou o telefone e ligou para o juiz, futuro colega.
Disse que se a notícia seria boa ou não não sabia, mas a verdade é que o causídico implicante, o Dr. Céspedes Escobar, acabara de morrer. E também não sabia, mas achava que o ataque fora provocado em parte pelo que não gostou de ouvir como justificativa. Concordou com o absurdo por ele mesmo praticado na defesa do futuro colega de plenário, mas disse que era assim também que a justiça às vezes tinha de se manifestar.
Do outro lado, numa felicidade indescritível, o magistrado procurou logo pedir a interferência do desembargador para que sua posse fosse logo marcada. O mundo jurídico aguardava ansioso por esse grande dia, salientou num cinismo descomunal. Argumentou ainda que estando na mais alta tribuna não se sujeitaria mais, e tão maldosamente, a advogados que insistiam em desacreditar na sua conduta judicante. Quando a beca lhe cobrisse de vez o êxito na magistratura, todos teriam que calar em nome de sua probidade e retidão. Do contrário não teria alcançado tal patamar no judiciário estadual.
E o corregedor, que jamais veria motivos para fazer qualquer objeção, apenas assinalou que o povo tem de aceitar de uma vez por todas ser o magistrado, seja desembargador ou juiz, a verdadeira justiça divina entre os homens, aquele que tem o poder de apontar, segundo o império do seu entendimento, qual o lugar do destino de cada um perante o que lhe é dado julgar. Finalizou dizendo que pessoas inconformadas são apenas pessoas inconformadas, situações em que os deuses da justiça, que são eles próprios, os magistrados, não devem ao menos considerar.
Tais palavras do colega foram como refrigério na alma do corrupto magistrado, do sentenciante a qualquer moeda. Ora, agora se achava verdadeiro anjo de candura, puro e inocente como os que plantaram pelos atos a dádiva da salvação. Por isso mesmo que em seguida tirou os dois processos de uma gaveta e colocou-os ao lado de sua pasta e outros processos já despachados. Iria devolvê-los à secretaria para que providenciasse, depois dos procedimentos de praxe, o envio para a vara de execuções.
Agora não tinha mais dúvida de que era um homem bom, correto, um magistrado com a força de um deus, como o próprio colega sentenciara. Estava em paz consigo mesmo, estava feliz, gritando no íntimo que o seu caminho estava completamente livre e que ninguém mais sequer suspeitaria das estratégias condenatórias levadas a efeito. Nem aquela nem as demais. Ademais, do jeito que o povo esquece rápido de todo o mal que lhe é feito, não tinha dúvidas que o seu passado seria lembrado apenas como o de um grande homem da justiça e julgador exemplar. E sorriu festivamente, gargalhando na dança das afrontosas aberrações.
Mas só Deus sabe o custo dessa alegria, desse festejar incontido. Logicamente que não agira isoladamente, pois sempre assessorado pela organização criminosa na qual ainda estava vinculado, e esta contando com nomes graúdos, poderosos, cujo mais fraco era o advogado Auto Valente. Este um verdadeiro pobre coitado diante dos demais. E ele, um verme irrecuperável, imagine os outros!
Mas o jogo havia sido jogado e agora dificilmente alguém poderia contestar a inteligência estratégica, mesmo que infame em todos os sentidos, para a vitória da injustiça diante de uma justiça aviltada e covardemente menosprezada. A inocência havia perdido feio para a falsa acusação, a leviandade, a insensatez. Daí os fogos da festa do mal.
Estratégia custosa demais, injustiça do mais alto preço. Nesse jogo sujo, nessa corrupção absurda, na total desvalorização da dignidade humana, resta agora contar os mortos. Primeiro Dona Leontina, mãe de Jozué; em seguida Dona Glorita, mãe de Pulo; depois Carmen Lúcia; e por último o Dr. Céspedes Escobar. Todos mortos em defesa da prevalência da justiça diante da tirania judicial, na luta pelo reconhecimento da inocência de condenados, na fileira dos que ainda acreditavam na força do bem subjugando o mal. Enfim...
Não só o magistrado estava feliz com os resultados obtidos até agora. Só faltava mesmo os dois presidiários inocentes serem transferidos da penitenciária de passagem para outro estabelecimento definitivo e tudo estaria acabado. O portão de entrada seria também o caminho da completa destruição, pois não era de se imaginar diferente. Por isso mesmo todos, indistintamente, estavam comemorando. Contudo, era Auto Valente o único que ressentia no espírito o gosto amargo dessa vitória.

                                                 continua...







Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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