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sábado, 15 de outubro de 2011

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 61 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 61

                                          Rangel Alves da Costa*


O diretor resolveu não comentar nada com Carmen sobre aquele incidente. Seria duro na apuração dos fatos, contudo sabia que de pouca valia era tentar punir contumazes torturadores instalados ali. Parecia já coisa arraigada, uma nefasta política de acolhimento, onde o único objetivo era acabar de vez com o presidiário, afetar sua integridade, atingir sua dignidade, transformando-o, por fim, num ser abjeto e sem qualquer valorização própria.
Por isso mesmo resolveu dizer apenas que estava providenciando um local apropriado para Paulo ficar, vez que o tinha encontrado muito abatido, com visíveis sinais de degeneração mental, fato que seria muito perigoso à sua integridade física se continuasse em meio aos outros presidiários. Pediu ainda que falasse com o novo advogado para tomar providências a esse respeito, vez que o rapaz necessitava urgentemente de tratamento externo.
Agradecendo a preocupação e o empenho do diretor, Carmen saiu dizendo que tudo seria resolvido o mais rapidamente possível, pois confiava plenamente no Dr. Céspedes Escobar. Assim, deixou o estabelecimento prisional e se dirigiu ao centro da cidade. Já era entardecer e aproveitaria para chegar em casa mais cedo, organizar umas coisas, arrumar a mala, pois no dia seguinte estaria muito ocupada e não gostava de fazer nada de última hora.
Assim que estacionou o veículo no local costumeiro, em frente ao local onde fixava moradia temporariamente, logo que abriu a porta e saiu percebeu que estava sendo observada, vigiada, que uma pessoa de boné e enorme óculo escuro, um pouco afastado, lhe olhava atentamente. E não somente isso, pois também fotografava. Tentava disfarçar tudo, mas até o dedo apertando o dispositivo para fotografar Carmen já havia percebido.
Num ímpeto, sem ter medo de nada, qualquer coisa que pudesse acontecer diante do estranho, ela se encaminhou rapidamente ao local para saber o que ele queria e a mando de quem estava ali. Tinha certeza que ele não estava ali em pé, observando atentamente ela chegar e fotografando, fazendo apenas às vezes de turista ou coisa parecida. Contudo, ao perceber a aproximação da destemida moça o indivíduo correu e dobrou a esquina, sumindo em instantes.
Na pressa, entretanto, no momento em que procurava guardar a câmera, deixou cair um papel e não teve tempo de voltar para apanhá-lo no chão. Visualizando aquele objeto branco que havia caído, ela aproximou-se ainda mais e abaixou-se para saber do que se tratava. Era um cartão de visitas e no verso, que ficou virado pra cima ao cair, estava não o endereço completo dela, mas indicações precisas sobre o local onde estava morando, bem como do seu veículo. Levantou o cartão e no outro lado estava escrito: Assembleia Legislativa – Serapião Procópio – Parlamentar.
Mas ora, ora, pensou Carmen. Não é que o safado está querendo me amedrontar? Mas está muito enganado, pois quem vai ter motivos para temer pelos erros cometidos será o próprio, o vil homem travestido de parlamentar. Após essas considerações pessoais guardou o cartão de visitas e se encaminhou tranquilamente até a entrada de residência. Certamente que aquele descuido do fugitivo seria muito útil mais tarde. Assim que tivesse oportunidade, e só para ele saber que ela estava a par de tudo que ocorria, faria a entrega em mãos daquele objeto e diria que na pressa, na fuga empreendida, o seu capataz havia deixado aquilo cair.
Mexeu numa coisa e noutra, fez um rápido lanche, tomou banho, ajoelhou-se perante o seu oratório, orou, pediu proteção, paz e luz no caminho, e em seguida escolheu um livro de poesia e se pôs a ouvir música clássica, com som ambiente, baixinho, somente para que os sentimentos ouvissem. Prova que a vida é capaz de oferecer momentos tão sublimes, doces, festivos ao coração. Daí não haver preocupação no mundo que lhe tirasse o bom e saudável hábito da boa música e da boa leitura, sentada em tapetes ou já recostada à cama, antes de adormecer.
 No toca cd o “Concerto n° 1 para Piano e Orquestra”, de Tchaikovsky; às mãos o cheiro das folhas de relva de Walt Whitman. E os olhos se deslumbravam diante dos versos quase molhados, quase vivos, cheirosos, doces, álacres, amargurados, extremamente pujantes do poeta:
  “Casas e quartos se enchem de perfumes .... as estantes estão entulhadas de perfumes/ Respiro o aroma eu mesmo, e gosto e o reconheço/ Sua destilação poderia me intoxicar também, mas não deixo/ A atmosfera não é nenhum perfume .... não tem gosto de destilação .... é inodoro/ É pra minha boca apenas e pra sempre .... estou apaixonado por ela/ Vou até a margem junto à mata sem disfarces e pelado/ Louco pra que ela faça contato comigo...”.
“A fumaça de minha própria respiração/ Ecos, ondulações, zunzuns e sussurros .... raiz de amaranto, fio de seda, forquilha e videira/ Minha respiração minha inspiração .... a batida do meu coração .... passagem de sangue e ar por meus pulmões/ O aroma das folhas verdes e das folhas secas, da praia e das rochas marinhas de cores escuras, e do feno na tulha/ O som das palavras bafejadas por minha voz .... palavras disparadas nos redemoinhos do vento/ Uns beijos de leve .... alguns agarros .... o afago dos braços/ Jogo de luz e sombra nas árvores enquanto oscilam seus galhos sutis/ Delícia de estar só ou no agito das ruas, ou pelos campos e encostas de colina/ Sensação de bem-estar .... apito do meio-dia.... a canção de mim mesmo se erguendo da cama e cruzando com o sol...”.
“Uma criança disse/ O que é a relva? trazendo um tufo em suas mãos/ O que dizer a ela?.... sei tanto quanto ela o que é a relva/ Vai ver é a bandeira do meu estado de espírito, tecida de uma substância de esperança verde/ Vai ver é o lenço do Senhor/ Um presente perfumado e o lembrete derrubado por querer/ Com o nome do dono bordado num canto, pra que possamos ver e examinar, e dizer/ É seu?”.
E adormeceu sobre a relva, passeou sobre a relva, sentiu o sentido da selva, ouviu o canto dos pássaros, correu pelos descampados, colheu uma flor e se presenteou, tomou banho no rio da aldeia, foi, princesa, foi rainha, passeou pelos ares no cavalo alazão, viu a nuvem e colheu o pingo na mão aberta e bebeu. Que felicidade, que felicidade! Tanto sonho bom que às vezes é melhor não sonhar tudo, se a noite seguinte poderá ver castelos e colher girassóis. Mas acordou. Estava em paz, tranqüila. Olhou o relógio e já estava mais tarde do que o esperado. Mas não tinha nada não. Ah, se a vida fosse ao menos parecida com um sonho bom!...
Mais tarde, assim que protocolou os requerimentos com as procurações no fórum, deu por encerrada essa etapa e agora era só aguardar o trabalho do advogado. Telefonou para a filha da falecida Glorita, deu-lhe conhecimento de toda situação e disse que talvez fosse preciso Paulo fazer tratamento externo e particular para que aquelas crises não se agravassem, mas que não se preocupasse que tudo seria providenciado. Disse ainda que viajaria naquele fim de semana, mas que na segunda-feira estaria de volta e faria uma visita ao anoitecer.
Em seguida telefonou para Dr. Céspedes Escobar e afirmou que dali há instantes os documentos já estariam juntados aos autos e talvez ainda naquela manhã, se ele encontrasse tempo, já poderia ter os processos em suas mãos. Não sabia, contudo, que o juiz corrupto jamais permitiria que outro advogado passasse a fazer a defesa de Paulo e Jozué, muito menos tomar conhecimento do seu conteúdo, das aberrações jurídicas ali vergonhosamente produzidas.

                                                   continua...






Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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