SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 30 de outubro de 2011

OS AMIGOS DO MENINO (Crônica)

OS AMIGOS DO MENINO

                                         Rangel Alves da Costa*


Sertanejo enviuvado de pouco, porém ainda novo e tendo um filho pra criar, depois que a mulher morreu achou que não tinha mais responsabilidade com a vida, com a manutenção da tapera, com o sustento dele próprio e do menino.
Deu pra ser preguiçoso e até arranjando inimizade com que lhe falasse ou oferecesse trabalho. De uns tempos pra cá não queria outra coisa senão armar a rede debaixo de pés de pau em frente da casinha virada pro mato e ali inventar que estava doente, com reumatismo, dor disso e daquilo, com enjoo na cabeça. Tudo mentira.
E o pior é que mesmo sabendo que não tinha mais alimento na cozinha, continuava dia e noite com o seu balançar de rede. Na dispensa não tinha mais nada mesmo porque catou tudo que havia ali de comida, entocou num embornal e levou pra debaixo da rede. Dormia um pouquinho, dava fome e metia a mão na cumbuca.
Aí aconteceu da comida dele acabar, mas com vergonha do filho ficou calado. O menino, nos seus dez anos, comia o que arrumava pelo quintal e ficava só esperando até onde o pai ia com aquela preguiça toda. Mas a fome bateu mais forte e o homem gritou pelo menino.
Zezinho vá matar rolinha que é pra nóis assar e comer. E o menino respondeu bem ao seu gosto.
Rolinha é bicho que nem caço nem mato. Num crio nem passarinho, muito menos rumar pedra com baleadeira bem no cocuruto dele. Deus me livre. Passarinho nasceu foi pra viver livre na mata, voar pra onde quiser, alegrar com seu cantar e não pra matar fome de preguiçoso. Rolinha é minha amiga e é melhor uma amiga que voa do que um pai preguiçoso.
O pai fazia que nem ouvia. E mais tarde gritava: Zezinho vá caçar preá pra gente fazer um guisado. Preá cozido num tem igual. A gente come de lamber os beiço e adespois dá um sono danado.
Preá é bicho rasteiro que nem caço nem mato. O que mais tem é preá, sei muito bem mas num vou não. Tem toca ali e acolá e tem o bichinho zanzando por todo lugar. Nessa hora deve tá roendo o capim que o senhor num alimpou, tá comendo formigueiro que na roça se alastrou, por isso deixe ele lá, roendo o que quiser, pois num vou botar mão no buraco do preá quando a cobra está por lá. Além disso, preá é meu amigo, nunca me fez mal, até deixa eu lhe pegar pra servir de animal no carro de boi que fiz.
Zezinho vá procurar cabeça de frade, adespois tire os espinhos e a pele e me traga a carne de dentro. Carne não tem igual a do frade, cor de coco molinho e sabor de peixe bom. Ande logo menino, vá.
Cabeça de frade num trago não. Mais fácil trazer urtiga e cansanção, que também é bom pra quem tá com fome de comer qualquer coisa. O frade é o próprio sertão, dá na pedra e no chão, se espalha por todo lugar, mas é fruto bem sagrado, por Jesus foi coroado e é por isso que vive do sol e da seca, agüentando um sofrimento que ninguém pode duvidar. E quem sou eu pra ir até lá e tirar na ponta do facão aquilo que é a própria natureza daqui? Cabeça de frade é minha amiga, além disso é do meu sangue sertanejo e eu num ia matar um parente só pro senhor encher barriga.
Zezinho vá lá na mata e procure ninho onde tiver, tire de dentro os ovinho e adespois jogue na água quente que é pra fome se sumir. Vá logo menino, cuide de ir.
Nem passarinho nem seu ninho, muito menos os ovinhos que vão trazer mais filhotinho. Até tô vendo a mãe chegar, alegre porque vai esquentar o que botou e se num encontra o seu fruto deve ser tamanha dor. Tanto esforço e sacrifício, tanto cuidado que tem, pra eu ir até lá e roubar o que mais tarde vai nascer e piar ao seu lado. É como filho tirado da mãe ainda na barriga e por isso eu num vou não. Ovo de passarinho é meu amigo, mais tarde vai voar por aqui e cantar juntinho de mim, até vou conversar com ele e dizer que nem passe perto de certa pessoa esfomeada.
Zezinho me traga água, me traga a rapa do prato, me traga o que tiver, senão enfraqueço demai e num posso mais trabaiá.
E Zezinho respondeu: Já que vai chover vai beber água, mas vou buscar uma coisa pra quando a terra tiver molhada. Vou trazer uma enxada, uns caroços de feijão e outros de milho. O senhor lavra a terra e espalha as sementes. Depois se deita na rede e espera brotar pra comer. Comigo se preocupe não, pois sou sertanejo e também amigo da fome.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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