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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 31 de outubro de 2011

SOBRE PÍFANOS E SAUDADES (Crônica)

SOBRE PÍFANOS E SAUDADES

                                              Rangel Alves da Costa*


Era dia de festa. E festa da Padroeira, a santa protetora do lugar. Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo, que Seu filho seja louvado, em nome de Deus, amém! Que seja louvado meu bom sertanejo!
Lá pelas cinco da manhã já se ouviam os fogos, o silêncio das ruas já era cortado pelos primeiros devotos. Que alvorada mais bela, manhã mais enfeitada de bandeirolas, um cheiro bom de paz e alegria pelo ar. Que Deus seja louvado!
Deixava-se o milho pra ser ralado dali a pouco, o café no pilão esperando um pouquinho, o leite de coco ainda envasilhado, os ovos de capoeira ainda no girau das galinhas, pois lá fora havia uma coisa tão bela que tudo pode esperar pra mais tarde.
E ouvia-se ao longe, bem mais afastado do centro, da praça da matriz e redondezas, a melodia ao mesmo tempo festiva e entristecida e o baque dos tambores, o trinado dos pratos, o xaxado caminhante nas areias sertanejas. Formando um grupo de cinco ou seis, caminhavam soltando sua música ao arrebol.
Ainda não haviam nem entrado na cidade, mas já se ouvia a família em comitiva com seus instrumentos de taboca sobre a boca, pequenos instrumentos artesanais, soprando suave, coisas de fé e do coração. Era a orquestra de pífanos que já estava chegando. Orquestra de uma família só, inigualável na originalidade e tradição.
Não havia sinfônica igual por todo o sertão. Ao menos naquele sertão de meu Deus. E todos os membros, do mais novo ao mais velho, de uma família banhada de sol: os Vítor. A velha e festeira Alzira, enrugada na vida e de festejar; Zé Vítor, o marido, sofredor com as danações da mulher, com seu chapeu e óculos escuros, numa alegria de envergonhar qualquer tristeza; Mané Vítor, o filho, cabra de toda obra, não só trinava na sua orquestra como fazia enxada, boi e boiada cantarem.
E outros, pois os Vítor eram muitos, pequenos ou já envelhecidos, uma família tão cheirando a terra e ao seu canto. Que se diga Dona Guiomar, João Vítor e Ventura e tantos outros Vítor de vitória da arte e da tradição.
Cria dessa prole é o maior aboiador das redondezas, respondendo por Geno Vítor ou simplesmente Genovito, versejador do mais autêntico lamento vaqueiro. Traz no sangue não só o traço artístico dessa família grandiosa, mas imensidão de autenticidade na preservação de uma cultura que já vem dos antepassados e raízes, cultuada e preservada como se fosse da própria gene familiar.
Alzira era uma fanfarra à parte. Já idosa, era amiga de todo mundo e muito mais de um fuzuê, de uma batucada, de uma festança. Com seu vestido rendado, lenço na cabeça, rosto fino e fortemente tracejado pelo tempo, aonde chegava já era chamando atenção, pedindo a palavra e uma pinga pra animar. Com mais uma dose começava a sapatear, a xaxar xaxado bom, a colocar na boca a taboca cantante e rodar pelo salão feito uma deusa de matiz sertaneja.
Esse tronco dos Vítor, do qual a velha e boa Alzira era matriarca, morava um pouco afastado da cidade, coisa de uns dois quilômetros, correndo por uma estradinha até chegar à casa que ficava numa pequena propriedade, onde procuravam sobreviver nos ofícios da terra, na vaqueiragem, no tanger carro de bois, em qualquer coisa que desse para a feirinha da semana.
Mas a residência de Alzira e Zé Vítor, casal de proa e de canto, era famosa demais. Além da fama festeira da mulher, ali, vez por outra, se realizavam leilões de oferendas caipiras, colocando-se no “quem dá mais” o bolo de milho, o doce de leite, a garrafa de pinga, o licor, o queijo de coalho, o capão, a galinha.
À luz de candeeiros, na malhada da casa e na salinha de chão de barro batido, no vento frio da noite sertaneja, depois de uma talagada tudo era arrematado ligeiro porque o melhor estava para chegar: a família reunida com seus pífanos, caixas, zabumbas, pratos e mãe e filho e xaxar. Alzira balançava os cambitos de um lado, batendo ligeiro o pé no chão, e Mané Vítor, seu filho, trejeitava de outro lado, numa pisada compassada com o som do zabumba.
Era essa família que vinha chegando logo cedinho para a festa da Padroeira Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo. Com passos lentos, ecoavam sua música enquanto as portas eram abertas, pessoas saíam para acompanhar, se fazia um cortejo de beleza sem igual.
E todos seguiam em direção ao grande salão, ao local da festa maior. E que estupendo palco. E eis que todos se postavam no lado de fora da igreja, próximo à porta de entrada e faziam dos pífanos um coro de anjos, querubins sertanejos chamando os seus para a festa da fé e devoção.
Ainda vejo os dedos magros passeando pelas tabocas; vejo os lábios ressequidos dando o tom da melodia, beijando a madeira em cone; ainda ouço aquela maravilhosa música. E que saudade que sinto, que saudade que dá!




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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