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quinta-feira, 13 de outubro de 2011

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 59 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 59

                                          Rangel Alves da Costa*


Já ciente dos pedidos de revogação já protocolados, Dr. Céspedes Escobar afirmou que naquele mesmo instante providenciaria as duas procurações e assim que Paulo e Jozué assinassem e fossem juntadas aos autos através de requerimentos, passaria a estar legalmente investido nas defesas e poderia dar carga nos processos e preparar as peças recursais.
Com os dados repassados pela ex-aluna, rapidamente providenciou os requerimentos e os documentos procuratórios, afirmando que agora dependia dela obter as assinaturas o mais rapidamente possível, vez que o tempo já passava a estar contra os dois. Com a promessa do pronto atendimento, se despediram cientes de manterem contatos quando necessário.
Contudo, antes que ela deixasse a sala, ele pediu apenas um minutinho para tirar um peso da consciência:
“Veja bem Carmen, não é e nem nunca foi do meu feitio fazer isso, mas diante da irresponsabilidade e safadeza com que o outro advogado tratou os dois rapazes, nem vou ligar pra ele e dizer que de agora em diante estaria à frente dos processos. Por ética profissional e até respeito, seria dever fazer isso. Contudo, só se deve respeitar quem se dá o respeito, só se deve prestigiar quem age para se dar prestígio, e não foi o caso dele. Pelo contrário, fora os casos em si, que são elementos processuais, vou procurar fazer dos próprios autos um abismo tamanho que eles, o advogado e os outros envolvidos, buscarão a todo custo enxergar a luz e não encontrarão. Agora vá, minha filha, e boa sorte”.
Carmen deixou o escritório renovada, com a certeza de que não estaria sozinha dali em diante. Agora restava seguir em frente na luta, na tenacidade e persistência e esperar os resultados. Mas nem pôde pensar muito a esse respeito e logo lembrou que teria de voltar ainda hoje àquela maldita penitenciária para obter as assinaturas nas procurações. Na firmeza que estava, e ciente que não podia ser diferente, decidiu que na parte da tarde retornaria ao infame local.
Não poderia deixar para amanhã porque logo cedinho teria que protocolar os requerimentos de juntada das petições, telefonar para o Dr. Céspedes e depois passar na universidade para saber como estavam providenciando a formatura. Não via a hora que esse momento chegasse logo. Depois se dedicaria com exclusividade a novos estudos para enfrentar o exame de ordem.
Entretanto, era um compromisso firmado consigo mesma, no dia seguinte não deixaria que nada impedisse de tirar alguns momentos para viver, ser Carmen Lúcia, filha e parente, amiga e irmã, reencontrar os seus, conviver um pouco com sua família. Eis que já havia decidido que logo cedinho do sábado viajaria com destino ao interior. Iria ao doce encontro de casa, bater à porta e molhar os olhos de todos da família.
E não era apenas uma visita familiar, de reencontro, saudades, abraços e recordações. Era muito mais do que isso, sabia muito bem. Precisava sentar com o seu pai e explicar tudo que estava acontecendo com aqueles dois inocentes. Conservador, não gostando nem de safadeza e enganação de advogado e muito menos de injustiça, certamente aprovaria a preocupação e o empenho da filha e ofereceria ajuda suficiente para tentar tirar os rapazes daquela situação.
Quanto a isso ela não tinha dúvidas, o problema era impedir que ele se revoltasse contra o advogado e mandasse alguns amigos seus de sangue no olho e exacerbado destemor dar uma boa surra no covarde. Se tivesse que fazer isso seria uma surra conjunta, um lanhar o lombo de gente grande e importante de não acabar mais. E com isso evitaria também o pior, pois sabia que o seu velho quando se sentia diante de absurdos iguais aqueles não tinha nenhuma medida, tencionando mesmo fazer coisas mais agressivas.
Isso era uma parte inafastável da visita, que certamente o objetivo maior seria o convívio familiar por dois dias, e menos do que isso, pois voltaria à capital no domingo ao entardecer. Mesmo assim valeria demais esses poucos instantes, deitando numa rede da varanda, comendo a insuperável comida caseira, se deliciando com o doce de leite, com o bolo de macaxeira, bebendo do leite da fazendo, apreciando o queijo e a manteiga produzidos ali mesmo.
E mais, muito mais. A manteiga de garrafa, daquelas bem amarelinhas, gordas, apetitosas, de modo que espalhadas por cima do feijão de corda faz o cristão esquecer que existe balança. Com carne de bode ou de carneiro não tinha igual. Mas sabia que encontraria mesmo era uma buchada de bode bem feita, com tudo que tinha direito, preparada naqueles panelões de fazenda e cozida desde cedo em fogo de lenha. E para abrir ainda mais o apetite o licor caseiro, a autêntica cachacinha de engenho, o vinho antigo. Seu pai era agrestino, amigo do gole certeiro antes das refeições, mas não deixava de saborear o vinho antigo que guardava em grande quantidade na adega.
Quando fosse retornar, e mesmo que disse que não precisava, sabia que iam entupir a mala do carro com um verdadeiro balaio de coisas boas, muitas delas produzidas na propriedade familiar. Queijo, mel, requeijão, manteiga comum e de garrafa, dúzias de ovos de capoeira, bolos de leite, de puba, de ovos e de macaxeira, compotas de doces de goiaba e de leite, doce de abóbora com coco, queijada, cocada dura, frutas de variadas cores. Era uma festa alimentar, mesmo sabendo que na cidade servia basicamente para presentear os amigos.
Dessa viagem não poderia abrir mão por nada nesse mundo. Mesmo não estando muito distante, a ausência da família por muito tempo causava uma sensação de vazio, de abandono, de solidão. E mesmo porque gostava do lugar, adorava caminhar pelas ruas da cidade e conversar com os velhos amigos, ser reconhecida e abraçada, chamada para um cafezinho com biscoito de goma. Apreciava ficar olhando as velhas senhoras com seus bilros fazendo renda, bordando, tricô e crochê, criando um universo artesanal maravilhoso. Um bom dia, um boa tarde, que coisa boa e gostosa era aquela vida pacata, vida simples do interior, bem diferente do medo constante que imperava nas cidades grandes e seus habitantes de olhares desconhecidos e amedrontadores.
Seria só uma parte do sábado e outra do domingo, mas seria tempo suficiente de fazer muita coisa por lá. Ademais, esquecer um pouco as dores do mundo, os trabalhos, os ofícios rotineiros, as obrigações, as preocupações com tudo e em todo lugar. Precisava de um pouco de paz, por isso mesmo é que não podia desistir dessa viagem. Porém, para seguir mais despreocupada, sabia que tinha de deixar as coisas organizadas, as procurações em juízo e o Dr. Céspedes tendo ciência que já podia começar a trabalhar.
Assim, mais animada com os planos que fazia, depois das duas horas da tarde seguiu novamente em direção à penitenciária de passagem. Até que podiam achar que já estava sendo chata chegando ali na entrada e pedindo tantos favores, mas teria de ser assim mesmo. Talvez eles não soubessem o significado de cada documento daquele, de cada assinatura obtida. Mas ela sabia. Ela sabia o significado que teria a liberdade para aqueles dois inocentes.

                                                   continua...






Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com 

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