A VELHA VIDA DO VELHO DA CASA VELHA
Rangel Alves da Costa*
Tudo muito velho, antigo demais, perdido no tempo. O mais novo ali era a casa velha, que já tinha mais de cem anos da última reforma; o velho morador, idoso por natureza e compleição física, era de uma velhice a toda prova. Nos rabiscos amarelados dos restos dos documentos constavam cento e vinte anos. Mas o próprio dizia, ainda na completa lucidez, que tinha muito mais do que isso, coisa lá pros seus duzentos anos ou mais. E quem iria duvidar?
Agora, somando as peripécias, proezas, lutas, dores, sofrimentos, alegrias e todo um baú de um monte de coisas, não havia coisa mais velha do que a vida do velho. Ora, ele era velho, porém sua vida era muito mais velha. E avelhantada demais porque vida curtida no sol e na chuva, no fogo e na brasa, na brisa e na ventania, no silêncio sufocante e no grito delirante. Se fosse juntar cada experiência e cada situação que o homem já tinha vivido, então acrescentasse ainda mais anos a essa velha vida.
Contudo, talvez o velho fosse também o menino mais velho que existia. Já naquela idade avançada demais, com todas as marcas do tempo se espalhando por todo o corpo, refletindo nas impossibilidades de fazer coisas que não esquecia, ainda assim costumava a pensar e agir em determinadas situações como verdadeira criança. Conversava com passarinho, espalhava alpiste pelos arredores para chamar os amigos, soprava bolhas de sabão pelo ar, colocava duas traves de pedras e ficava chutando uma velha bola para ver quantos gols marcava. E a cada acerto um soco no ar, um dizer a si mesmo que ainda consigo.
O Capitão-do-mato um dia chegou a sua casa revirando tudo e perguntando aonde ele tinha escondido aquele negro safado do Engenho do Coronel. Havia dois dias que estava embrenhado nos matos por causa daquele safado fugitivo e quando botasse as mãos nele o sangue ia jorrar. O velho disse que não tinha visto escravo nenhum e mesmo que tivesse visto não ia lhe dar o prazer de levantar o chicote pra um irmão da mesma cor. Por isso foi levado no lugar do outro e ficou três dias amarrado no tronco e tomando chicotada acompanhada de sal grosso no lombo.
Quiseram fazer uma revolução contra o governo regente e foram até a casa do velho perguntar como se enfrentava as forças do reino sem ter armas e sem os homens conhecerem táticas de ataques e contra-ataques. O velho perguntou de quantos homens dispunham e disseram que uns cinqüenta. Então eram cinqüenta contra mais de mil, e estes só da guarda pessoal do rei. Então o velho disse que fizessem a revolução assim mesmo, pois sairiam vitoriosos. E deu a receita: Pegue os cinqüenta homens e passem tudo pro outro lado, pro lado do rei. Quando estiverem dentro do corpo do inimigo então faça a cabeça de cada um, incuta-lhes a indignação e ódio ao soberano e a revolução estará ganha.
Num tempo distante, quando havia uma verdadeira corrida do ouro naquelas bandas, cismaram que bem em cima da casa do velho havia uma mina e nos arredores de sua pequena propriedade riquezas minerais de não acabar mais. Primeiro mandaram oferecer dois contos de réis, depois três e mais cinco. Tudo contos de réis. Como não havia acordo e nem o velho cedia, mandaram dizer que ele tinha uma semana para sair dali, abandonar tudo, por bem ou por mal.
Então o velho disse que não precisavam chegar a esse ponto não, que sairia sim, mas primeiro precisava trocar um dedo de prosa com o rico minerador. No outro dia o homem, já acompanhado de gente com ferramentas, riscou na sua porta e desceu do cavalo, esbravejando ignorância. Quando viu o homem daquele jeito, o velho lhe disse na cara que esperava tratar com gente e não com bicho. Então o ricaço espumou e gritou que podiam atirar naquele velho safado. Como não saiu nenhum tiro, gritou mais uma e outras vezes, e nada de bala atingir o homem. Totalmente enraivecido, olhou pra trás e não encontrou um pé de pessoa. Eis que os marmanjos olhavam e viam o velho na frente do homem, no meado da porta, mas também por trás do patrão, nas suas costas. E viram ainda o mesmo velho do lado e no meio deles, descarregando as armas. Amedrontados, supondo um raivoso feiticeiro, um ser perigoso do outro mundo, correram em debandada.
E o ricaço arrogante, que fim terá tido? Simplesmente virou uma pedra, e dessas pequenas que segura porta pra o vento não ficar batendo pra cá e pra lá. E toda vez que o velho se aproximava dela pra amolar seu velho facão, a pedra gemia, suava, ficava em tempo de morrer de medo. Só não morria mesmo porque era pedra.
Poeta e cronista
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