NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 52
Rangel Alves da Costa*
Essa propensão de Jozué pelos textos bíblicos antecedia em muito a situação em que se encontrava agora. Sua religiosidade era bem diferente dos objetivos devocionários de muitos que estavam ali encarcerados.
Reconhecidamente, grande parte dos prisioneiros procura desesperadamente se apegar na religiosidade para atenuar os pecados, buscar forças para vencer aquelas dificuldades impostas, se aproximar da palavra de Deus como uma chave que poderia abrir-lhe os portões da prisão, ou simplesmente para tentar passar uma imagem de regeneração e recuperação, sempre calcada na forjada figura do outro homem. Com Jozué era diferente.
A sua religiosidade era verdadeira e a fé inabalável ainda maior. Mesmo naquela situação, sabendo-se inocente e sofrendo sem merecer, ainda assim não deixava de se apegar à força divina para vencer todos os obstáculos. Um dia pensou em ter por cima daquela cruz pesada demais que estava carregando as palavras “Eli, Eli Lama Sabactani!”. Deus, meu Deus, por que me abandonaste? Estava no Salmo 22 e também no Evangelho de Mateus, 27: 46, sabia muito bem. Lia sempre, gostava muito, conhecia do começo ao fim:
“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? Por que te alongas do meu auxílio e das palavras do meu bramido?
Deus meu, eu clamo de dia, e tu não me ouves; de noite, e não tenho sossego.
Porém tu és santo, tu que habitas entre os louvores de Israel.
Em ti confiaram nossos pais; confiaram, e tu os livraste.
A ti clamaram e escaparam; em ti confiaram, e não foram confundidos.
Mas eu sou verme, e não homem, opróbrio dos homens e desprezado do povo.
Todos os que me vêem zombam de mim, estendem os lábios e meneiam a cabeça, dizendo:
Confiou no Senhor, que o livre; livre-o, pois nele tem prazer.
Mas tu és o que me tiraste do ventre; fizeste-me confiar, estando aos seios de minha mãe.
Sobre ti fui lançado desde a madre; tu és o meu Deus desde o ventre de minha mãe.
Não te alongues de mim, pois a angústia está perto, e não há quem ajude.
Muitos touros me cercaram; fortes touros de Basã me rodearam.
Abriram contra mim suas bocas, como um leão que despedaça e que ruge.
Como água me derramei, e todos os meus ossos se desconjuntaram; o meu coração é como cera, derreteu-se no meio das minhas entranhas.
A minha força se secou como um caco, e a língua se me pega ao paladar; e me puseste no pó da morte.
Pois me rodearam cães; o ajuntamento de malfeitores me cercou, traspassaram-me as mãos e os pés.
Poderia contar todos os meus ossos; eles vêem e me contemplam.
Repartem entre si as minhas vestes, e lançam sortes sobre a minha roupa.
Mas tu, Senhor, não te alongues de mim. Força minha, apressa-te em socorrer-me.
Livra a minha alma da espada, e a minha predileta da força do cão.
Salva-me da boca do leão; sim, ouviste-me, das pontas dos bois selvagens.
Então declararei o teu nome aos meus irmãos; louvar-te-ei no meio da congregação.
Vós, que temeis ao Senhor, louvai-o; todos vós, semente de Jacó, glorificai-o; e temei-o todos vós, semente de Israel.
Porque não desprezou nem abominou a aflição do aflito, nem escondeu dele o seu rosto; antes, quando ele clamou, o ouviu.
O meu louvor será de ti na grande congregação; pagarei os meus votos perante os que o temem.
Os mansos comerão e se fartarão; louvarão ao Senhor os que o buscam; o vosso coração viverá eternamente.
Todos os limites da terra se lembrarão, e se converterão ao Senhor; e todas as famílias das nações adorarão perante a tua face.
Porque o reino é do Senhor, e ele domina entre as nações.
Todos os que na terra são gordos comerão e adorarão, e todos os que descem ao pó se prostrarão perante ele; e nenhum poderá reter viva a sua alma.
Uma semente o servirá; será declarada ao Senhor a cada geração.
Chegarão e anunciarão a sua justiça ao povo que nascer, porquanto ele o fez”.
Sabia também que a súplica “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” havia sido a última expressão utilizada por Jesus antes de entregar sua alma ao Pai. Quanto sofrimento! Mas como o Senhor, ele também não estava vencido. A sua ressurreição seria a liberdade. Mas quando?
Era muito difícil, até impossível, mas empenhava-se para manter a calma, confiando sempre que de repente algo de bom lhe acontecesse, alguma coisa pudesse mudar. E fazia isso por se apegar demasiadamente na ideia de que a injustiça não pode prevalecer onde a justiça deverá brilhar como uma luz em meio à escuridão. Crendo na justiça humana, que até já estava tardando a chegar, inevitavelmente relacionava-a a justiça divina. Esta sim, com o poder de acabar com as trevas do injusto e clarear os homens para o reconhecimento e a prática da justiça.
Com a pequena bíblia na mão, envolto em pensamentos de justiça divina e liberdade, lembrava da mãe Leontina e sabia que aquela devoção só havia se tornando possível por causa dela. Ela própria sendo analfabeta, conhecendo apenas alguns nomes porque decorava, sem ter condições de pagar escola boa para o filho, mas assim mesmo nunca deixou de colocar na sua cabeça a importância do estudo. Nem das letras nem do caminho do bem e da necessidade do respeito e mesmo temor das coisas divinas.
Verdade que havia estudado irregularmente, passando até mesmo períodos inteiros sem freqüentar a escola pública ali mesmo nas proximidades do Cafundó do Judas. Mas já ia prestar o exame supletivo quando ocorreu o lamentável episódio. Trabalhava de um tudo, de ajudante de pedreiro a varredor de rua, no que encontrasse para sobreviver com dignidade, porém sem jamais deixar apagar o sonho de se formar um dia. Achava bonito esse negócio de agronomia, de coisa da terra, de lidar com as coisas do campo. Mas será que ainda haveria tempo?
Por causa da luta de sua mãe agora podia ler aquela bíblia. Não somente ler, mas também entender muitas coisas nas entrelinhas, nos escondidos das palavras. E lembrava-se das vezes que passava lendo passagens da bíblia e fazendo sua mãe viajar da Cananéia ao Jordão, dos desertos aos templos, da cruz à ressurreição...
Por vezes sentia que ela chorava e perguntava por que, porém já sabendo o que iria ouvir como resposta. O sofrimento do nosso Pai, meu filho, o sofrimento dele que foi demais! Dizia. E depois completava: E tudo em nome da gente. E o que a gente faz em nome dele, meu filho?
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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