Rangel Alves da Costa*
Janela e porta abertas. Carta sob a mesa. Um lenço de chorar reencontro. Um jarro de flores do campo. Um cheiro de bolo saído do forno. E uma estrada adiante...
Mãos abrem a carta. Mais uma leitura para ter certeza. Naquele dia, logo mais, na estação. Só falta caminhar até a estação para esperar o trem...
Parece paisagem de outono. Entardecer tristonho e cinzento. Vento soprando folhagens, pedaços dispersos pelo ar. Mais adiante a estação, tomada de silêncio e solidão, ainda que pessoas sejam avistadas.
A estação tão envelhecida como o próprio tempo, como as cores mortas do outono. Um deserto tomando a face da estação, de local de chegada e partida do trem. Dois bancos, mas ninguém sentado na velha madeira. Todos em pé, todos de lado a outro.
Não deveriam estar assim. Mas todos tão tristes, aflitos, ansiosos, andando vagarosamente de canto a canto. Ninguém fala com ninguém, parecem desconhecidos, ainda que sejam do mesmo lugar.
Alguns com lenços à mão, outros relendo cartas, ainda outros olhando fotografias e outros objetos de recordação. Um buquê, uma flor solitária, uma garrafa de champanhe barata. E também olhares mirando em direção à montanha, à curva dos trilhos, à chegada do trem.
O tempo passava apressado, corria. O entardecer já estava todo abrasado no céu. Mais tarde as sombras começariam a chegar e a feição da noite tomaria o espaço. As mãos procuravam os relógios de bolso, os olhos se voltavam para os marcadores de pulso.
O trem já deveria estar apitando ao longe. É certeiro, cumpridor de horário, nunca chega atrasado. Mas nesse dia nenhum sinal de seu avanço por detrás das montanhas adiante. No pico do entardecer a fumaça já deveria estar dançando pelos ares da estação. Mas nada de o apito avisar a sua chegada.
Mas ele logo chegaria. Dali um pouco mais e ele daria sinais. Não havia ocorrido nenhum problema, nenhum atraso. Contudo, dessa vez vinha carregado demais, trazendo coisas além da conta nos seus poucos e envelhecidos vagões.
E de repente lá vem o trem. Não que o seu focinho tivesse aparecido fumegante, fumando charuto, barulhento e parecendo cansado. Não. Apenas o apito cortando o ar, piando lá por trás da montanha.
E lá vem o trem. Ele mesmo, dividindo em vagões os velhos baús que trazia, os sacos de relembranças, as mochilas dos tempos idos, os embornais de esperanças, as malas repletas de coisas velhas e novas.
Lá vem o trem, cheio demais para vencer o restante dos trilhos, imenso demais diante da quantidade de pessoas e memórias que se avolumavam nas latarias, madeiras apodrecidas, fumaça do carvão que o alimenta.
As pessoas que vinham nos vagões não significavam quase nada diante do significado do trem. Todos aqueles rostos, faces ansiosas pela chegada, olhos ávidos em avistar, eram apenas uma parte de uma história remontando séculos de partidas e chegadas, de idas e voltas.
Os malotes traziam cartas dizendo dos motivos daqueles que não poderiam voltar. As janelas chegavam sem os rostos tão esperados na estação. De repente uma mala chegava sozinha; noutras vezes ninguém esperava o viajante desejoso de reencontrar a família.
O pai espera a filha, a mãe espera o filho. O rapaz voltou da guerra e foi recebido na estação. Esqueceu a muleta no último vagão. Mas nem precisava mais. Parecia curado de tudo, de todas as dores, de todos os males. Afinal, todo bom retorno é um renascimento.
E o trem foi chegando, chegando, até parar na estação. Gente correndo, gente aflita, tentando avistar os seus através da janela. Um grito, uma lágrima, um gesto de comoção. O buquê caiu bem diante da porta do trem.
Alguém abaixou, segurou as flores e levantou o olhar. Depois se apressou para beijar uma face. Queria beijar na boca.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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