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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 23 de março de 2013

LÁGRIMAS GUARDADAS EM BAÚ (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Um velho baú escondido, guardado ou esquecido num canto. Dentro dele antigas lembranças, cartas, bilhetes, álbuns, retratos espalhados, diários, pequenos embrulhos, todo um passado, memória dos tempos idos. E também tantas lágrimas ali preservadas.
Todos os objetos ali guardados choravam quando revistos, remorados. Um dia molhados de lágrimas, enxugavam pelo lenço dos tempos e ressecavam adormecidos no leito do esquecimento. Mas se acordados por um coração saudoso, logo umedeciam ao toque das mãos ou diante do olhar. E acabavam gotejando orvalhos de saudade.
Logicamente nenhuma lágrima escorria de uma carta ou de uma velha fotografia, molhando a mão que a erguia diante do olhar. Não se ouvia soluço vindo do retrato nem da folha seca ali tristemente conservada. E não acontecia assim simplesmente porque tudo era transferido para os olhos contemplativos da pessoa diante daquele baú, revisitando seu passado.
Por vezes, uma gotícula apenas; outras vezes um pequeno filete se derramando pelo rosto; e ainda outras vezes as enxurradas, os temporais, inevitáveis inundações no corpo, no espírito, na alma. E também a lágrima escondida, invisível, que chega e não se mostra, apenas existe sem transbordar na fonte. E esta é a mais dolorosa, a mais terrível, a mais angustiante.
Lá dentro havia uma carta marcada em batom dizendo não chore meu amor, não chore. E dizia mais: Eis que a dor sentida pela distância será refrigério no reencontro. Olhos tão belos, feição tão sublime, sorriso que hiberna, nada disso pode se afligir com a momentânea distância. Guarde a lágrima para o instante de contentamento e felicidade, durante o abraço do nosso reencontro. Mas por enquanto não chore meu amor, não chore...
Num cantinho, junto à poeira dos tempos e cheirando à madeira envelhecida, estava uma amarelada fotografia. Lindo rosto, jovial semblante, olhar distante, boca entreaberta em sorriso. Quantos anos teria aquele retrato? Apenas um jovem, apenas um rosto menino e já tão envelhecido no papel em preto e branco. Já estava amarelecido, já desbotado em muitos lugares. Mas ele continuava ali com seu olhar distante e já ultrapassando tudo que poderia alcançar. E tanta lágrima caída por cima desse retrato que ao segurá-lo parecia uma comporta que se abria no sentimento e na saudade.
Um terço guardado entre as páginas de uma Bíblia. A capa dura, com letras douradas gravadas em relevo, parecia não afetada pela sua longa estadia no baú, mas seu interior com páginas tão frágeis que corriam o risco de rasgar com o simples manuseio. E ali o terço com suas Ave-Marias e Pai-Nossos, com fé de eternidade, e também um Salmo (56:8): “Tu contas as minhas vagueações; põe as minhas lágrimas no teu odre. Não estão elas no teu livro?”
E também dentro da Bíblia, entre as páginas evangelistas, uma pequena folha manuscrita, um poema com letra minuciosamente desenhada, cuja leitura logo remeteria a uma esperança amorosa: As estações se renovam na esperança, o pêndulo da vida numa balança, de um lado a certeza do momento, do outro o idílio e o tormento, para quando o instante impuser a dor, logo a força do destino mostrar o amor. E vencendo a desesperança, ser feliz te amando a maior herança.
Uma pequena caixa em madeira envernizada contendo joias de herança: duas lindas e grossas alianças presas uma a outra por fios de cabelos entrelaçados; uma corrente prateada trazendo o suplício de Cristo numa cruz; uma caixinha de música com sua bailarina esperando a melodia que não cantava mais. Ali também uma garrafa de náufrago com sua carta desconhecida, seu pedido de socorro ainda estancado. E tanta mais que dava para inundar a sala inteira de tantas lágrimas.
Então ela chegava ao entardecer, abria a janela para o vento da tarde entrar, balançar a cortina e sussurrar canções cortando o silêncio. Depois colocava o baú adiante para o reencontro com os seus, sua história, sua herança familiar. E de lenço a mão ia enxugando o mar que transbordava de lá.

  
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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