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terça-feira, 15 de janeiro de 2019

LAMPIÃO DE CELULAR



*Rangel Alves da Costa


Cornélio Tesourinha, que ainda hoje autoproclama-se o mais afamado de todos os coiteiros que no passado serviram ao Capitão Lampião e seu bando, de vez em quando vem com umas histórias que sequer me aproximo para ouvir. Evito a todo custo os seus tão conhecidos deslavamentos. Quem já se viu tanta mentira assim, e logo num homem já na curva dos cem?
O homem mente tanto que dá engasgo só de ouvir pelos outros. E o pior que ainda tem um monte de gente que vai à procura do mentiroso para se deleitar com suas conversas sem pé nem cabeça, com seus embustes de fazer estátua acordar e correr. Mas bem feito. Como se pode acreditar num homem que diz que já foi casado com uma raposa, que tem um filho guaxinim, que já morreu e foi mandado de volta? Só se foi pra continuar mentindo muito mais!
Ainda vem um cabra me perguntar se podia ser verdade a história contada pelo mentiroso e dando conta de que no tempo do cangaço o bando de Lampião tinha do bom e do melhor, desde telefone celular a água gelada de geladeira no coito. E também televisão e forno micro-ondas, além de outros utensílios de alta tecnologia.
Interessei-me pelo tamanho da mentira e arribei apressado na direção da casa do lorotista, ainda que com a certeza de que avermelharia de raiva. Chegando lá, como se tivesse tomado um remédio para evitar o pior, comecei a fazer perguntas e mais perguntas. Eu só faltava estrebuchar perante tanta mentira, mas ele nem aí. Sobre o tal celular (e também sobre a informática cangacista), o desavergonhado contou assim, tim-tim por tim-tim:
“Celular mesmo só tinha Lampião, e mandado de presente pelo Coronel Veriano das Flores, lá da região do Quiproquó. O problema é que o telefone do Capitão deu problema logo na tardezinha da véspera daquela matança em Angico. A bateria descarregou e o fio, que era puxado de Piranhas, do outro lado do rio, talvez tivesse sido tirado da tomada, e ninguém sabe por quem. Ou sabe, mas nunca quis dizer. Eu sei quem foi, e depois eu digo.
Na verdade, nada teria acontecido daquele jeito se o telefone de Lampião tivesse bom. Com certeza, gente da própria volante, e gente graúda, tinha telefonado pra ele e avisado pra se retirar. Mas era assim mesmo que se fazia. Eu mesmo já presenciei o Capitão marcando jogo de carteado pelo celular, e com gente graúda da volante. Enquanto pensavam que tava caçando cangaceiro, tava mesmo era jogando buraco, relancinho e três-sete, debaixo dum pé de umbuzeiro. Lampião era bom de jogo e nunca perdia. Também nunca aceitava o dinheiro ganho. Pelo contrário, dava ao graúdo da volante um negocinho por fora.
Mas a verdade é que naquela tardezinha do dia 27 o celular ficou totalmente descarregado. Quem também não gostou da falta de energia foi Maria Bonita, acostumada demais a tomar água quase congelada da geladeira que tinha no coito. Geladeira novinha e mandada de presente por Mané Belarmino, um fazendeirão que naquele tempo existia pelas bandas do Poço Redondo.
Maria Bonita só gostava do bom e do melhor. Todo dia se aporrinhava por que a televisão dela era a pilha. Certa feita, ela disse a Lampião que ou ele arranjava uma televisão bem grande, dessas fininhas de parede, ou ela ia assistir filme noutro lugar. No instante seguinte, o cangaceiro já tava mandando bilhete pra Mané Belarmino. E certamente pra ele mandar pro coito a melhor televisão que existisse. Mas voltando ao celular, pois foi assim mesmo.
Lampião gostava de tirar retrato com ele, até mandava que filmassem ele fazendo jeito de tiro e de ataque. Mandava retrato direto pra Padre Ciço. Sempre se afastava um pouco quando o assunto era mais segredoso, mas ainda dava pra ouvir: “Dez caixas de munição e mais duas de arma boa. Também uma remessa de charuto cubano e uma porção de litros de uísque escocês. Maria disse que não se esqueça dos vinhos, dos perfumes franceses e dos queijos finos...”. Mas logo esse celular que ele tanto gostava foi acabar a bateria.
E na véspera do triste acontecido. Eu mesmo não vi não, não vou mentir, mas dizem que quando lhe mandaram um balaço, o rei cangaceiro tava de celular na mão. Mesmo sem carga na bateria, certamente queria fazer uma ligação de urgência. Talvez gritar perguntando: “Seu fi de uma égua, é com traição que quer me pagar o que me deve?”. Foi tarde demais. O celular não falou e a bala comeu no centro. Sim, pra que não esqueça, a verdade é que depois do acontecido, com aquela matança toda, carregaram a bateria do celular e encontraram no whatsapp uma lista espantosa de amigos: governador, político, comandante de volante, coronel, todo mundo. Foi assim mesmo, pode acreditar!”.
Acreditar? Mas como acreditar em tanta mentira? Mas, por fim, perguntei: “E entre os coiteiros, quem tinha telefone celular?”. “Eu”, e esta foi a resposta mais deslavada que já ouvi. E o velho mentiroso, talvez achando pouco, ainda disse: “Mas o meu era feito de osso de gado...”.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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