SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 25 de dezembro de 2010

CANTAREI UMA NOVA CANÇÃO (Crônica)

CANTAREI UMA NOVA CANÇÃO

Rangel Alves da Costa*


Mesmo sem querer, tenho cantado muitas canções que falam em solidão, dor, tristeza, angústia, sofrimento e abandono. Compositor dos meus próprios ais, percebo que as rimas teimaram em esquecer o brilho da estética do amor, a concordância da harmonia com alegria e a precisão métrica da paz.
Juro que não cantarei mais estas canções. Vou jogar todo o meu repertório bem ao longe nas águas do mar, queimarei suas letras na fogueira dos dias idos e deixarei que o vento leve as lembranças do que cada verso triste dizia. Viverei outro tempo, um tempo maravilhosamente novo e cantarei uma nova canção.
Quero uma canção passarinho, revoada, canção ninho e canção filhote, verso pouso e pousada, como se pelos ares fosse agora minha estrada. Canção de pio, de piado, arrolho, chilreado, gorjeio, trinado, serei um pássaro treinado para cantar alegremente para a vida. Porque nunca quis ouvir o sabiá, nunca me dei conta do uirapuru, nunca me dei conta do canário, pensando que bastava meu cantar sozinho, gemido triste de passarinho.
Quero uma canção de alvorecer, de entardecer, de viver; quero um cantar orvalhado, molhado da noite, sem gosto de lágrima, sem lembrança de mágoa, um canto que chega sozinho e vai abrindo caminho, e de repente já é manhã, já é jardim, já é flor. E quando for primavera quero um cantar colorido, da cor do arco-íris do seu vestido, cor de coração reconstruído, com cor sobre cor, coração na canção.
Quero uma canção janela, com sol entrando nela; uma canção porta aberta, com um caminho adiante e uma fronteira que liberta; um canto sem trancas, sem fechaduras, com chaves esquecidas em qualquer lugar, com muros baixinhos e veredas por todos os lados, com buracos na parede por onde entre o sol e o luar, sem parede sem nada, que é pra todo mundo chegar. É essa canção que quero, feito bolha de sabão, onde tudo é ilusão e coisa mágica de viver.
Quero uma canção você, eu, os outros, todo mundo, quem é amigo e quem ainda não é. E que todos venham ouvir uma canção bonita, excluída a nota aflita, somente dizendo que amo você, que tenho amigos, que nunca estarei sozinho ao longo do caminho, pois todos que ouvem são capazes de cantar também, e em coro dizer que saia da rua, que entre que a casa é sua, que tome água e receba o pão, pois não o conhecia, mas veio certeza que é irmão.
Quero uma canção diário, bilhete, caderno guardado no armário, carta de amor e de amar, rabisco em qualquer papel, prometendo da terra ao céu. E toda escrita bonita, de doce recordação, tudo guardado num baú feito um coração, que abro pra não chorar ou sofrer, mas pra viver o passado que de contente me fez presente, mas fez agora para recordar o que de melhor a vida pôde ofertar. E veja como você é bela, e veja ainda você olhando para mim do outro lado, num ontem que não é passado porque sinto tudo como agora.
Quero uma canção com um prato na mesa e até com sobremesa; uma canção com Zezinho de barriga cheia e Mariazinha dizendo que quer mais um pouquinho, pois alguém fez pra eles uma canção de arroz com feijão, farofa e macarrão, salada e leite com pão, e não esqueceu o copo d'água, o de vestir e sorrir, de ser gente e ter dignidade, e que não é nenhuma bondade. Simplesmente reconhecer que uma canção tem o poder de encher barriga, presentear com sorriso e alegrar o coração.
Quero uma canção irmão, pai, filho, geração. Uma canção amém, pois Deus é meu cantar também, e sem Ele nem música nem ninguém.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: