TENHO MEDO
Rangel Alves da Costa*
Tenho medo do relógio da praça que atrasa a cada batida e nos deixa atrasados para o encontro com a vida. Por isso eu tenho medo.
Tenho medo do tempo que é silencioso demais, não diz uma palavra sequer no meu caminhar, mas sei que dará um grito agonizante a qualquer momento, antes que eu possa chegar. Por isso eu tenho medo.
Tenho medo que a fotografia de criança, da infância e do sorriso, que vive adormecida no fundo do baú, qualquer dia seja despertada pelas mãos de alguém e me encontre como ando agora, triste e solitário, com as rugas e as marcas que foram impostas pela vida dura. Por isso eu tenho medo.
Tenho medo de deitar, dormir e sonhar com coisas belas demais, pois sempre acreditei em sonhos, mas não acredito que ainda tenha tempo para me tornar passarinho e sair passarinhando por aí sem que a peteca do dia seguinte me alcance. Por isso eu tenho medo.
Tenho medo de amar, amar ainda, amar uma vez mais e quantas vezes puder amar, pois foi precisamente por causa do amor que conheci a solidão, a tristeza, a lágrima, a angústia e a desilusão. Não falo nem em lembrança nem em saudade. Seria trazer de volta o sofrimento por amar. Por isso eu tenho medo.
Tenho medo da nuvem escurecida adiante, do tempo feio lá em cima, da tristeza que se abate sobre os campos e a cidade. Virá temporal, virá tempestade, virá vendaval, virá ventania, virá enxurrada, virá destruição, virá escuridão e tudo a ser refeito. Até que tudo passe e tudo renasça estarei trancado, fechado na escuridão de algum lugar. Por isso eu tenho medo.
Tenho medo do cálice na prateleira, do cálice na mesa, do cálice sendo segurado com a mão. E tenho medo do vinho que se derrama nele, da minha boca que se aproxima dele, do aroma e da suavidade do líquido dos deuses, da falsa alegria e percepções que ele provoca. Depois tudo passa, tudo se mostra mais dolorido e verdadeiramente cruel. E para viver feliz teria que viver num vinhedo, numa adega, bem ao lado de tonéis de prazeres envelhecidos. Por isso eu tenho medo.
Tenho medo da estrada, do caminho, da vereda, da curva, do bosque, do labirinto, da fronteira, da encruzilhada, da via infinita, do fim da estrada. Os meus passos não costumam sair do lugar e ainda assim de vez em quando está à beira de abismos, perto do fogo, ao lado de precipícios. Por isso eu tenho medo.
Tenho medo da noite, do anoitecer, do dia, da manhã, do amanhecer, da tarde, do entardecer, da primavera, do verão, do outono, do verão, da chuva, do sol, da lua, da estrela, do cometa, do raio, do trovão, da chuva, do tempo quente, do tempo frio, do vento, da ventania, da paisagem, da natureza, do horizonte, daquela fonte, daquele rio, daquele poço, da gota d'água, do orvalho, da flor, da planta, do bicho, do passarinho. Mas da serpente não tenho medo, da fera não tenho medo, da mordida ou da ferida não tenho medo. Sei que é tudo muito estranho. Por isso eu tenho medo.
Tenho medo do telefone que toca, do barulho da campainha, da voz do vizinho que grita, do toque na porta, da pessoa que chama, do grito, do sussurro, até do silêncio. Aprendi que dificilmente nos incomodam para dar notícias boas. Por isso eu tenho medo.
Tenho medo do jornal, do telejornal, da notícia, da manchete, do acontecimento, do que certamente irá acontecer. Já conheço a cor das notícias, a dor que elas trazem, o número de vítimas presentes nelas. Por isso eu tenho medo.
Só não tenho medo de dizer que tenho medo. Ao menos não temo conviver com a verdade.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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