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quarta-feira, 24 de julho de 2013

OS ESQUECIDOS (MEMÓRIA E VIDA DEPOIS DO CANGAÇO) - II


Rangel Alves da Costa*


Afirmo, sem medo de errar, que a maioria da população atual de Poço Redondo não sabe dizer quem foi Zé de Julião e muito menos o cangaceiro Cajazeira; não lembra mais de Sila ou de Adília e nem sabe o que significaram na história do cangaço; não conhece nada sobre a participação de Mané Félix ou de outros coiteiros e cangaceiros naquele período de lutas sem vitórias. Parte da história de Zé de Julião, por exemplo, só foi conhecida com as filmagens de “Aos ventos que virão” na região. E assim mesmo completamente distorcida, irreal.
Hoje em dia, por exemplo, se perguntar a algum morador quem foi Durval Rodrigues Rosa, logo terá como resposta o falecido líder político, ex-prefeito, valoroso sertanejo reconhecido por todos na região. Mas ninguém o recordará como o rapazote em cujas terras ribeirinhas da família Lampião foi chacinado, e muitos menos daquele que conhecia todos os segredos envolvendo a participação de seu irmão, o coiteiro Pedro de Cândido, na trama que culminou com a tragédia cangaceira.
Mesmo meninote, Durval rondava o coito e também ajudava o irmão coiteiro naquilo que o bando ali refugiado necessitasse. Porém, nunca gostou de relatar em detalhes o que sabia. Questioná-lo sobre aquelas verdades escondidas era o mesmo que adentrar num sombrio labirinto. Verdade é que faleceu levando consigo a sentença de absolvição ou de condenação do irmão Pedro de Cândido, acusado de traição a Lampião e seu bando.  
Soa até como contrassenso que tenha acontecido assim, mas a verdade é que pessoas estranhas ao seu meio os tenham valorizado e reconhecido muito mais do que aqueles conviventes sob o mesmo chão. Enquanto os sertanejos se mantinham afastados, ignorando aquelas vidas recheadas de feitos - para o bem ou para o mal -, outros chegavam de muito distante ávidos para lançá-los o olhar e a palavra. E ouvir, acima de tudo.
E em Poço Redondo, município do sertão sergipano que forneceu mais de duas dezenas de filhos seus ao bando mais famoso de cangaceiros e em cujo solo, na Gruta do Angico, coito às margens do Velho Chico, Lampião e mais nove companheiros foram chacinados a 28 de julho de 38, sempre foi marcante a indiferença das pessoas com relação aos seus irmãos de luta. A par dos já citados, os exemplos se avolumam.
Não se conhece bem os motivos de ter acontecido assim. A maioria dos ex-cangaceiros nunca gostou de ser reconhecido como tal, de ser relembrado pela sua trajetória catingueira. Por trás disso tudo o temor que permaneceu por muito tempo, como se ainda estivessem sendo perseguidos pela polícia, tivessem que ser chamados a prestar contas às autoridades, serem vítimas de vinganças ou problemas não resolvidos desde outros tempos.
As perseguições policiais existiram mesmo, é verdade. Muitos caçadores de cangaceiros, talvez ainda não satisfeitos com os acontecimentos de Angico, continuaram perseguindo aqueles que conseguiram sobreviver à chacina. Não bastou, como alguns fizeram, que se entregassem à polícia. E não porque as perseguições continuaram com uma feição de pessoalidade, de acerto de contas de indivíduo para indivíduo, da polícia contra o ex-cangaceiro. O “ex” era a senha maldita. O sargento Deluz, por exemplo, fez fama nesse encalço aterrador, agindo com desmedida perversidade.
Zé de Julião, alcunhado de Cajazeira no bando de Lampião, foi um exemplo claro de que as perseguições pessoais continuaram existindo mesmo após a chacina de Angico. Perdeu sua esposa Enedina no fogo, porém conseguiu escapar. E daí em diante se viu muito mais encurralado do que nos tempos de luta aberta. Contudo, a história registra que outros fatores interferiam para a continuidade das perseguições.
Ser ex-cangaceiro era apenas a desculpa para o prosseguimento dos encalços, vez que contra ele pesavam outras desavenças, até mesmo de antes de entrar para o bando. Um dos motivos para que ele enveredasse no mundo cangaceiro foi exatamente o repúdio contra as ações violentas da polícia contra os inocentes sertanejos, aliadas às repetidas extorsões e ameaças. Talvez a polícia não houvesse esquecido aqueles arroubos de indignação de um filho de um fazendeiro de então. Por isso aproveitou-se da ocasião para testar a sua força.
Mas a verdade é que as perseguições policiais contra o ex-cangaceiro passaram a ter outras motivações. Ter participado do bando era apenas uma desculpa de fachada. O que realmente pesou contra ele foi o fato de ter se mostrado disposto a enfrentar politicamente os poderosos da região. E quando disse que seria candidato a prefeito, então a coisa pegou fogo para o seu lado. Daí ter sido forçado a viajar para o Rio de Janeiro. Ao retornar e se lançar novamente candidato continuaram as perseguições. Até ser assassinado, já nas terras de Poço Redondo, quando mais uma vez regressava do exílio forçado.
Como demonstrado, não era vão o temor demonstrado pelos ex-cangaceiros. E mesmo muitos anos depois, quando já não se falava mais daqueles acontecimentos de Angico nem de qualquer investida policial contra eles, ainda assim permaneceram arredios, amedrontados, só aceitando falar quando conhecia bem quem os procurasse. E até mesmo Alcino, uma forte liderança local, iniciou suas pesquisas tendo grandes dificuldades para contar com a colaboração daquelas pessoas.
Esse afastamento dos ex-cangaceiros e coiteiros se justificativa por si mesmo. Estavam exercendo um legítimo direito de proteção pessoal e de não querer fuçar em cinzas de fogo adormecido. Contudo, o que não se justifica é que a população de Poço Redondo, conhecendo cada um e sabendo de sua passagem pelo cangaço, tenha se mostrado tão alheia a esse povo combatente e com uma história tão pujante. E não conhecer o acontecido nos limites de onde vive revela ainda mais o descaso com o passado e com o que lhe deu feição de importância.
Vejo como descaso, desvalorização mesmo, estar na presença de Adília, pessoa que entrou no cangaço ainda adolescente, companheira de Canário e irmã de Delicado, e avistá-la como pessoa comum. E assim acontecia. E o fazendo estavam, também, renegando a história, o passado, as lutas sangrentas que ainda ecoavam pelas moitas catingueiras. E certamente ainda ressoam por aquelas brenhas de sol e espinhos.
Para a maioria dos poço-redondenses era como se nada daquilo tivesse acontecido, era como se aquelas pessoas jamais tivessem sido comandadas por Lampião ou arriscado a vida para não deixar nada faltar aos revoltosos. E vejo total desacerto nessa postura de indiferença. Heróis ou bandidos, justiceiros ou vermes sanguinários, fossem como fossem, verdade é que eram pessoas distintas, e, como tais, personagens de um mundo onde a força sertaneja foi colocada a toda prova.
Continua...


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

2 comentários:

Anônimo disse...

Professor Rangel: Às vezes evito postar comentários pertinentes aos artigos que diariamente leio sobre o cangaço, por uma questão de ausência de conhecimento do contexto onde ocorreram os fatos. Tenho medo de estar pisando em "solo minado". Contudo, artigos de tamanha fecundidade, como é o caso deste que relata parte da vida de ZÉ DE JULIÃO, não poderia dexar passar em "branco". Parabéns Professor Rangel, e acredito que você vai dar continuidade ao referido assunto na próxima postagem. Antonio José de Oliveira - Bela Vista - Serrinha-Ba.

Anônimo disse...

Caro Professor Rangel: Com o falecimento do senhor Manoel Dantas Loyola - Candeeiro -, tudo indica que restam vivos apenas dois ex-cangaceiros, conforme informação dos blogs LAMPIAOACESO e MENDESEMENDES. São eles "VINTE E CINCO e DULCE".
Neste horário 3;45, aproxima-se o sepultamento de SEU NÉ aos 98 anos de idade, conforme informação do nobre escritor Ângelo Osmiro no blog do MENDES neste dia 24.07. Antonio José de Oliveira - Serrinha-Ba.