Rangel Alves da
Costa*
Somente
por iniciativa de Alcino Alves Costa, um ex-prefeito municipal, pesquisador e
escritor das coisas nordestinas e principalmente cangaceiras, a história
daqueles meninos e meninas, depois homens e mulheres alquebrados da luta, não
foi completamente esquecida. Coube a ele tirar muita areia daquele chão
pedregoso em busca de um depoimento confiável, de uma “verdade verdadeira”.
Somente mais tarde foi domando aqueles temores para ter diante de si um vasto
leque das tantas proezas.
Como a
população não dava - e continua não dando - qualquer importância aos guerreiros
das caatingas, muitas vezes apenas os familiares tinham conhecimento do passado
dos seus e procuravam resguardar os seus feitos dentro de quatro paredes, nos
baús do esquecimento. Raríssimos os casos onde outras pessoas estranhas ao
círculo familiar respeitavam aquele passado, demonstravam algum interesse e
procuravam repassar o que conheciam.
Foi assim
que por muito tempo a história de Zé de Julião permaneceu sob o mármore frio do
esquecimento. Nem sua família nem seus filhos (teve várias mulheres depois da
morte de Enedina no Angico) eram vistos perante a figura do pai famoso. Mas
famoso como, se relegado às sombras do esquecimento? Afamado pela história,
ainda que não pelo conhecimento de seu percurso de vida. José Francisco do
Nascimento, seu nome de batismo, certamente foi a personagem mais emblemática,
mais fascinante e mais injustiçada de todo o sertão sergipano.
Ora, filho
de família rica para as posses sertanejas de então. Seu pai, Julião do
Nascimento, era proprietário de muitas terras e rebanhos. Casou ainda muito
moço com Enedina - que mais tarde o acompanharia na vida cangaceira - e por ali
permaneceu ajudando nos afazeres familiares. Possuía a leitura, a escrita e o
senso crítico como os grandes diferenciais naquela povoação sertaneja de imensa
maioria analfabeta e empobrecida.
Contudo,
foi a visão própria de mundo, permeada de conscientização crítica, que
modificaria o seu destino. Como afirmado, tomava-se de extrema revolta todas as
vezes que via ou ficava sabendo dos contumazes desmandos policiais, submetendo
maldosamente o pobre sertanejo. E não só os mais humildes como aqueles se
sobressaíam economicamente, pois o seu próprio pai, Julião do Nascimento,
muitas vezes fora vitimado pela vil ganância da tropa infame. Constrangia e
ameaçava qualquer um em busca de obter todo tipo de vantagem, principalmente
econômica. E aquele povo já tão sofrido não merecia tal tipo de tratamento, na
visão revoltosa do filho de Seu Julião.
Tomado de
indignação e sentindo que por ali não havia justiça séria e capaz de dar um
basta naquelas tantas injustiças, viu no ideário cangaceiro a única forma de
combater aquela situação opressora. Abusos e absurdos protagonizados pela
polícia, que era a mesma volante que vivia no encalço do bando de Lampião. Então
viu o cangaço como bandeira de luta,
como forma de combater os desmandos se alastrando.
Foi aceito
no grupo juntamente com sua esposa e nele foi alimentando sua luta até a
chacina de 28 de julho de 38. Conseguiu sobreviver ao ataque da volante
alagoana comandada por João Bezerra, mas viu sua querida Enedina ser
mortalmente atingida. Sem a companheira, sem o comando do grande Capitão, sem
meios de prosseguir na luta armada, procurou refazer sua vida com outros
planos.
Mas não
era nada fácil a vida de ex-cangaceiro. Foi perseguido, caçado, tido como
valioso prêmio. Sempre acossado, vagueou pelo sul da Bahia, retornou a Sergipe,
passou uma temporada no Rio de Janeiro até retornar novamente a Poço Redondo,
dessa vez para resolver problemas familiares, vez que o seu pai havia falecido.
Seu desejo era permanecer no seu lugar, tomando conta do seu quinhão na
herança, mas teve de retornar a Nova Iguaçu para cuidar de outros negócios seus
deixados por lá.
Ainda
naquelas distâncias, saudoso, martirizado pela vontade de retornar de vez, não
suportou mais e decidiu regressar. Ao retornar dá início ao seu plano maior:
ser o primeiro prefeito do então emancipado município. A antiga povoação havia
alcançado sua independência política em 1953. E a primeira eleição já estava
sendo organizada.
Mesmo
sendo lembrado pelos adversários como o “ex-cangaceiro”, Zé de Julião era
benquisto demais perante a população. E sua vitória era dada como certa. Disputou
com Artur Moreira de Sá, um político famoso em Porto da Folha, de onde Poço
Redondo acabava de ser desmembrado, e o resultado foi surpreendente, pois deu
empate: 134 votos para cada um. Pelo critério da idade, Artur Moreira acabou
sendo eleito, pois mais velho que o filho de Seu Julião.
O
resultado, contudo, não foi motivo para desânimo, pois ele já se mostrava
fortalecido o suficiente para ser o escolhido na eleição seguinte, a de 1958.
Assim achava e assim planejou. Não sabia, porém, que teria como adversário,
além de um candidato propriamente dito, também as principais lideranças
políticas do estado, a corrupção eleitoral, a justiça tendenciosa e toda sorte
de perseguições. Vinte anos depois e a face de ex-cangaceiro ainda era
explorada pelos concorrentes. Fato marcante é que aqueles declaradamente seus
eleitores deixaram de receber os títulos eleitorais.
Mesmo
jogado às feras, acossado de todo lado, vendo a injustiça imperar, resolveu não
fraquejar e decidiu levar adiante seu sonho de ser prefeito. Contudo, não havia
como vencer sem ser votado, e a maioria de seus eleitores não podia votar. No
dia da eleição, sabendo que os títulos negados lhe tiravam qualquer chance de
vitória, convidou alguns vaqueiros amigos e, como numa cavalhada desenfreada, com
todos montados nos melhores cavalos, saiu invadindo seções eleitorais e
saqueando urnas. No lombo dos animais as provas das aviltantes manobras
políticas.
Não só
teve seu sonho desfeito mais uma vez como se viu encurralado pela justiça. A
ordem de prisão foi prontamente expedida. A polícia procurava-o por todo canto,
mas ele continuava ali pertinho, no vizinho município baiano de Serra Negra e
sob a proteção do poderoso coronel João Maria. Contudo, tempos depois é cercado
pela polícia sergipana e preso. Passou pouco tempo na penitenciária e foi liberado
por interferência política, sob a promessa de que transformaria sua revolta em
aceitação governista. Sem saída, aceitou, mas não engoliu o acordo. Era do seu
feitio ser assim.
Em
liberdade, planejava ser candidato novamente, mas foi insistentemente
aconselhado por amigos a passar uns tempos noutro estado até a situação
política e judicial se mostrar mais confiável. Então comprou passagem e seguiu.
Mas dizem que nunca chegou ao seu destino. Outra versão diz que já estava em
Salvador quando resolveu retornar. Não propriamente a Poço Redondo, mas para ficar
escondido nos arredores esperando o momento certo para acertar contas com
antigos desafetos políticos.
Nada disso
pode ser confirmado. O que se tem como verdade é que viajou e se manteve por um
tempo afastado de seu berço de nascimento. E também que retornou, pois numa manhã
de domingo, 19 de fevereiro de 1961, Zé de Julião foi encontrado morto,
assassinado, num lugar chamado Bastiana, nos arredores de sua querida cidade.
As motivações desse crime ainda hoje são controversas. Muitos asseveram que foi
morto à traição e a mando daqueles com quem pretendia ajustar contas, resolver
na bala mágoas políticas ainda não esquecidas. Algum dia contarei a verdade de
toda esse fatídico episódio.
Eis,
portanto, parte da história desse grande sertanejo. Contudo, ainda que sua saga
seja comprovadamente rica de dramaticidade e sua vida tenha sido tão marcante,
por muitos anos ficou completamente esquecida da população poço-redondense.
Inacreditável que pudesse ter acontecido assim, mas foi preciso que Alcino
desencavasse a história desse grande sertanejo para que o seu conterrâneo
passasse a conhecer esse épico maior.
Continua...
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Professor Rangel: O mestre Alcino Costa era um verdadeiro desvendador dos fatos do nosso sertão nordestino. Saudades e muita falta está ele fazendo aos companheiros de mesmos ideais e aos seus familiares. É como diz você: "coube a ele tirar muita areia daquele chão pedregoso em busca de um depoimento confiável, de uma 'verdade verdadeira".
Quanto a história de Zé de Julião, continue explanando-a, pois assim conheceremos em profundidade mais uma das injustiças cometidas nessa nossa terra de gente destemida e de coragem ilimitada. Parabéns caro Escritor pelos seus artigos. Antonio José de Oliveira - Povoado Bela Vista -Serrinha-Ba.
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