DESCONHECIDOS – 27
Rangel Alves da Costa*
Após uma breve leitura, afadigada pelos imprevistos do dia anterior e da correria desse dia, olhou ligeiramente para as paisagens além da janela, fechou os olhos e adormeceu. E sonhou.
“E sonhou que era menina sapeca, menina bonita de laço de fita, pés descalços e boneca na mão, correndo pelos quatros cantos de uma casa imensa, alegre, porém sentindo-se sozinha e por isso mesmo chamando alguém, procurando uma coleguinha para brincar. E corria para um lado e para o outro, zanzava por todos os cantos, procurava uma porta aberta ou uma janela e nada encontrava. De repente, assim que jogou a boneca no chão e sentou num canto e começou a chorar, sentiu o sol bater no meio da sala e quando olhou viu que vinha de uma porta que sozinha se abriu. Sentiu também um ventinho gostoso soprar, limpou os olhos ligeiro e correu em direção à luz para ver o que estava adiante, o que estava lá fora. E viu a natureza lá fora, um amplo espaço gramado contendo gramas, plantas e flores e um pouco mais ao longe terra batida e caminhos que se abriam por todos, nuvens de carneirinhos passeavam no céu, um horizonte bem azul e bem bonita se estendia acima e ia sumindo para bem longe, correndo para o infinito. Quanto mais passarinhos surgiam mais passarinhos cantavam, soprava o vento e vinha a brisa, as folhagens murmuravam e os bichos escondidos pelas matas pareciam conversar baixinho, e tudo muito lindo e encantador, parecendo uma paisagem de contos de fadas sem ter lobo mau, bichos malvados e pessoas maldosas nem nada. Em meio a cenário tão encantador, pulou, correu, quis cantar e abriu os braços como se quisesse voar. Mas de repente o céu foi ficando escurecido e as nuvens mudaram de cor, começaram a surgir umas vozes estranhas e assustadoras, as folhas secas das árvores dançavam pelo ar e os bichos corriam de um lado a outro, depois seguindo por uma daquelas estradas que se abriam adiante. E então, assim que o ambiente pareceu que ia ser engolido por qualquer coisa, ela correu atrás dos bichinhos que iam debandando, sem olhar pra trás, sem olhar para o lado, apenas pensando em fugir dali e se salvar não sabia de que. E um barulho bem forte se fez e um vento agressivo rapidamente soprou, mas ouviu como se uma porta estivesse se fechando por trás e depois tudo foi ficando calmo e silencioso e o que começou a ver adiante foi um aeroporto, um monte de pessoas e aviões e alguém chegou calmamente pedindo que subisse em uma daquelas aeronaves. Entrou e sentiu o avião subir e subir, subir mais e muito mais, e depois foi descendo e descendo até que sentiu a cadeira chacoalhar com o pouso. E depois só viu um ônibus parado adiante, esperando somente que ela embarcasse para dar partida. E foi seguindo por uma estrada desconhecida, com uma criança dormindo dentro dele, seguindo sem saber o destino, sem saber para onde ia...”.
Acordou assustada com o sonho, até mesmo porque achou que de certa forma esse devaneio trouxe consigo alguma coisa muito próximo dela, algo que tinha a ver com sua infância, com sua vontade de ser igual a outras crianças e a sua solidão infantil. E depois aquela paisagem medonha, que outra coisa não poderia ser senão o mundo que passou a viver e fez com que tivesse de fugir a qualquer custo.
Durante grande parte da viagem ficou sentada sozinha, praticamente nos fundos do ônibus. Olhava as paisagens escurecidas e ficava imaginando como deveria ser por ali se tudo estivesse claro, durante o dia, com a vida e suas coisas cumprindo o seu normal percurso. Pelo que havia ouvido falar, naquela região distante e empobrecida tudo era diferente da cidade grande, nos modos e costumes das pessoas, no seu jeito de ser e viver. Como seria realmente? Ficava indagando.
Nas vezes que o ônibus parou para que as pessoas fossem estirar as pernas, lanchar ou ir ao banheiro, resolveu ficar ali mesmo sentada, esperando a nova partida. Não sabe por que, mas tinha pressa de chegar. Numa dessas paradas entrou um senhor já envelhecido e sentou a seu lado, mas ela só dirigiu a palavra a este quando o dia já estava clareando, e o fez pra perguntar se ainda estavam longe de Mormaço.
Então o senhor respondeu que já tinham praticamente chegado, pois já estavam nas terras do município, agora passando perto de alguns lugarejos que ficavam na beira do Rio São Pedrito. Imediatamente Carol mostrou um sorriso de satisfação e perguntou com bastante interesse: “Como são esses lugarejos, são longe daqui?”.
E o velho respondeu com conhecimento de causa: “Ora, menina, mas é um pulinho, é logo ali, e tem dois bem pertinho. É tudo antiga vila de pescador, mas hoje só restam poucas pessoas por lá. A maioria das casinhas tão abandonada, pois o povo achou melhor viver esmolando na cidade. Eu mesmo tenho muito vontade de terminar os meus dias por lá. E se a senhora tiver interesse de conhecer outro dia, é só descer em qualquer beira dessa estrada e perguntar onde fica os lugarejos da beira do rio. Dando um conto a um meninote ele vai levar você certinho até lá...”.
“Mas eu vou pra lá agora mesmo!”, disse Carol.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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