SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

DESCONHECIDOS - 38 (Conto)

DESCONHECIDOS – 38

Rangel Alves da Costa*


O veículo se dirigiu à praça principal de Mormaço, passou em frente à mansão iluminada do Coronel Demundo Apogeu e sua velha amada, a ex-madame e agora somente Sofie, e tomou o rumo da Pousada Acauã’s, a única que comportaria aquele número de viajantes, e olhe lá.
Mas que bela residência esta aqui, parecendo mais uma construção colonial, daqueles tempos em que os barões se esmeravam na arquitetura de suas moradias, importando da pedra portuguesa ao ladrilho mais distante, observou a viúva Doranice ao passar defronte ao casarão do velho e afamado coronel.
Por muita sorte conseguiram quartos para todos, ainda que alguns dos viajantes tivessem que se imprensar para se instalar num quarto só. Logicamente, se ali tivesse uma suíte presidencial esta seria da viúva, que ficou contentíssima por poder contar com um quartinho com exclusividade. Outro quarto foi destinado a Carlinhos e Yula, mais um para as mulheres, e mais dois para ser dividido entre o restante dos homens.
Como se sabe, além dos dois rapazinhos, a viúva estava acompanhada de duas secretárias particulares, um cozinheiro, dois ajudantes-de-ordens e um responsável por toda a logística da viagem. Assim, antes mesmo do banho, ela ordenou ao responsável pelo bem-estar do grupo que providenciasse um lauto jantar para todos. Não queria que o cozinheiro interferisse ainda, pois sabia que nada de especial poderia ser feito naquele momento.
A gerente da pensão se apresentou diante da velha senhora e pediu desculpas por, àquela hora, não poder apresentar um cardápio com um jantar mais variado, contudo poderia providenciar alguns alimentos que dispunham em quantidade suficiente.
E apresentou uma lista contendo galinha caipira cozida e assada, carne do sol com pirão de leite, ovos de galinha caipira, bolos de puba, de macaxeira, de ovos e de leite, manteiga da terra, pães fresquinhos feitos ali mesmo, cuscuz de milho ralado, batata doce, macaxeira, inhame, carne de churrasco de boi e de porco, além de carneiro cozido.
A viúva Doranice ficou verdadeiramente maravilhada com a diversidade e a qualidade da comida, ficando de água na boca e sentindo na imaginação cada prato e cada sabor, ainda que um tanto entristecida porque sabia que muito pouco daquilo poderia apreciar. Chamou o cozinheiro particular para que opinasse e o homem quase dá um faniquito.
Disse que seria impossível dispor de tanta comida assim de uma hora pra outra e queria porque queria invadir a cozinha da pousada para investigar a procedência dos alimentos e experimentar cada um daqueles produtos oferecidos. A gerente disse então que seria o maior prazer que ele a acompanhasse até a cozinha.
Verdade é que o homem entrou cozinha adentro e de olhos estupefatos foi fazendo a festa. Perguntou se tinha alguma aguardente por perto e foi ficando por ali silenciosamente guloso. Durante o jantar ninguém mais o viu e nem foi perguntado por onde andava.
Dona Doranice se contentou com uma coalhada maravilhosa que lhe foi oferecida. Há quanto tempo não experimentava aquele prato delicioso e verdadeiramente sertanejo. Pensou em se servir de mais um prato, porém achou melhor comer apenas um pedaço de bolo de macaxeira com café-com-leite. E a cada beliscada, a cada mordida recordava de muitos anos atrás, por ali mesmo, nessa mesma região que agora abraçava de alma e coração.
Como não gostava de deitar muito cedo, perguntou se Carlinhos e Yula tinham interesse em dar uma voltinha pela praça com ela. Se pelo dia a região inteira era puro calor e mormaço, e tal aspecto influenciando no nome daquela cidade, a partir do entardecer geralmente o clima mudava muito e um ar mais refrescante começava a soprar pelas campinas e invadia as ruas, calçadas e casas.
A praça mesmo estava com um clima ideal para um passeio. Como toda praça principal de cidade interiorana, ali ao lado estava a imponente matriz, centenária e majestosa, com delicada arquitetura de tempos muito mais prósperos. O coreto também muito antigo, porém bem conservado, ao centro, árvores espalhadas pelos quatro cantos, passarelas de lajotas para os caminhantes e banquinhos próprios para o conversar amigueiro, o proseado amoroso, para o descansar olhando a vida ao redor.
Doranice e seus amigos gostaram muito do local, tanto foi assim que não se preocuparam em sentar em nenhum daqueles bancos, mas sim caminhar por toda sua extensão e chegando até aos começos de outras ruas. E de repente Carlinhos perguntou se não era bom que entrassem um pouquinho na igreja para ver como ela era por dentro.
A viúva ficou encantada com a ideia e até reclamou de sim mesma porque não havia pensado nisso antes. Entraram pela porta enorme e logo avistaram um templo majestosamente simples, com traços de muitas riquezas em tempos mais antigos, porém agora se impondo pela simplicidade. Que encantamento conseguia passar ao espírito de todo aquele de bom coração que ali chegava!
“Que igreja maravilhosa, com a simplicidade estrutural, mas com uma infinita riqueza que meus olhos não conseguem enxergar. Que coisa admiravelmente bela e encantadora, nessa imensidão faltando de tudo e parece-me que até bancos para os fiéis sentarem, mas que contém uma coisa que não consigo identificar no momento. Parece-me que é essa magia da fé, do fervor religioso, das coisas divinas que emanam aqui. E sinto anjos, sinto a luz divina, sinto a benção recaindo sobre todos nós”. Disse Dona Doranice aos meninos, completamente comovida.
Em seguida Yula falou: “Mas parece que o povo está um pouco distante de sua igreja, pois vejam Dona Doranice e Carlinhos, apenas uma pessoa ali sentada na frente, talvez orando silenciosamente”. “É verdade meu filho, mas ainda bem que a igreja não está sem ninguém. Aquela pessoa tão contrita saberá muito bem os motivos de estar ali em profunda oração. Parece que já fez suas preces e vai retornar ao seu lar, também já é noite, e muitas pessoas preferem televisão à igreja, infelizmente. Lá vem ela...”.
Assim que levantou e começou a andar por entre a fileira de bancos, ao se aproximar do pequeno grupo a mulher parou e ficou mirando nos olhos de Doranice. Quanto mais olhava mais os olhos brilhavam, o rosto avermelhava, a surpresa tomava conta de todo o corpo. Do mesmo modo se sentiu a viúva e disse a si mesma, nervosa: “Meu Deus, mas não pode ser!”.


continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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