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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

MINHA TIA SOLTEIRONA (Crônica)

MINHA TIA SOLTEIRONA

Rangel Alves da Costa*


Porque quero preservar minha vida e minha integridade física, deixarei de citar o verdadeiro nome de minha tia. Acho melhor também não usar qualquer apelido, pois vai que ela não goste e estarei com os dias contados. Será apenas minha tia solteirona ou coisa parecida.
Não sei por que as pessoas falam tanto mal dela, dizendo que não passa de uma chata que ficou no calitó porque nenhum macho suportou tanta arrogância e frescura; afirmando que seria impensado qualquer homem ao menos chegar perto algum dia, diante das suas conversas certinhas demais e dos muitos perfumes que usa ao mesmo tempo; ou ainda chamando-a de velha coroca e invicta, tribufú rejeitada e museu de cera.
Gosto de minha tia porque ela sabe que também acho isso tudo dela e ainda assim me ajuda de vez quando, me chama pra conversar e até me revela alguns segredos cabeludos e paixões incontidas que nunca saíram do papel do seu coração.
Tenho essa amizade com ela sim, mas tenho certeza que as coisas que ela mais gosta na vida são o velho espelho da sala, um bauzinho que ela jamais deixa que alguém veja o conteúdo, a penteadeira rústica do seu quarto e uma danada de uma janela que dá para o horizonte.
Com medo de alguma desfeita, nunca me arrisquei a perguntar por que essa adoração toda a essas coisas e objetos. Que não chegue aos ouvidos dela, mas tenho certeza que o espelho é para saber se ainda não está totalmente mumificada, um pouco conservada diante da força implacável dos anos. E sei que ela sorri diante do espelho, porém não sei como consegue mover os músculos da face em meio a tanto pó, cremes, poções e todos os tipos de cosméticos.
Certo dia um primo meu insinuou que nunca mais tinha visto a tia, e por isso mesmo ela tinha que tirar qualquer dia aquela máscara mortuária para ver se o rosto ainda existia. O pior é que ela soube dessa história e não prestou não. Seguiu diretamente até a delegacia mais próxima e prestou queixa contra o próprio sobrinho, acusando-o de desonra à sua imagem. Foi um problema. Verdade é que ele está impedido de se aproximar dela até hoje.
Com relação ao bauzinho que ela tanto esconde - que juro dia desses abri-lo de qualquer jeito -, confidencialmente os parentes se contradizem sobre o seu conteúdo. Alguns dizem que é ali que ela guarda a sete chaves todas as cartas de amor, fotografias antigas e lembranças de uma vida de paixões. Só que tudo criado por ela mesma, cada carta escrita de próprio punho, fotografias de artistas recortadas de revistas, bugigangas que coloca ali para mentir pra si mesma que foram lembrancinhas enviadas pelos seus amores. E quem já viu ela amando?
Outros menos radicais dizem que o baú é completamente vazio, não possui absolutamente nada lá dentro, e quando ela abre o fica remexendo nele é por pura vontade de que alguma coisa boa e importante tivesse acontecido na sua vida e que pudesse ser colocada ali como testemunha em retalhos. Coitada de minha tia. Dá realmente tristeza ao vê-la tão angustiada todas as vezes que abre o bauzinho. Passa a mão pelos olhos, limpa uma lágrima e depois segue para a janela para aumentar o martírio.
Outro dia, enquanto estava na janela com aqueles olhos tristonhos e distantes, ela me chamou para ver um barquinho solitário que vinha singrando lentamente pelas águas. Tive pena nessa hora. Somente minha tia com sua solidão e desesperança para enxergar um barquinho numa paisagem de chão e mato. E perguntei onde estava o barco e ela levantou a mão e apontou para as nuvens. Nesse momento também vi o barco, meu Deus!
Outras coisas eu poderia falar sobre ela, mas acho melhor não. Afinal de contas, talvez ela só seja assim tão diferente e incompreendida por ver os anos passando e perceber cada vez mais que jamais receberá um abraço de amor ou um beijo de paixão. Até que ela poderia arrumar um namorado sim, alguém como ela, que chegasse algum dia de barco ou num cavalo branco. E surgisse das nuvens.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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