SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 13 de fevereiro de 2011

SEM INFÂNCIA (Crônica)

SEM INFÂNCIA

Rangel Alves da Costa*


O dia sem a infância da manhã seria somente a vida escaldante e a temeridade da escuridão. Tudo tem infância, nos segundos com relação às horas, na ação com relação à história, no primeiro passo com relação à chegada. Menos determinadas crianças, que nascem e praticamente já têm que viver como adultos para o resto da vida.
Levanta Zezinho, que seu pai já colocou os bois no carro e já tá pronto pra ir. Cuida menino dorminhoco, que ontem você já foi tarde e não derrubou nem duas tarefas de palma. Se avexe Maria, que essa hora sua tia já tá descabando lá pro riacho com monte de roupa na cabeça. Vai logo cortar cana menino; anda que o dono da olaria precisa de lenha; cuida Zefinha que o barro pra fazer pote vai endurecer; pegue logo essa enxada e saia correndo!
Não é invenção não, pois tudo realidade, e muito mais presente nesses rincões de meu Deus do que a gente possa imaginar. Nesses lugares, sertão adentro, mundão afora, assim que começam a caminhar as crianças já se tornam verdadeiros trabalhadores. Os próprios pais se encarregam de roubar-lhes os anos mais preciosos da vida e lhes impõem a dureza de qualquer ofício.
Esse absurdo ocorre em tão grande monta que muitas vezes a pessoa olha para uma criança de sete ou oito anos e parece que está diante de um adulto, de um homem feito. E o pior é que muitas vezes com a pele já maltratada pelo sol; pés de unhas enormes e sujas e cheios de espinhos; mãos calejadas e endurecidas, também espinhentas e espinhosas; lanhos, cicatrizes e marcas pelo rosto inteiro; olhos que não sabem mais enxergar sua idade nem corpo que saiba os anos que tem.
Há, então, de se perguntar: Cadê o tempo do bico, de correr despreocupado e de pés no chão atrás de uma bola, de subir na montanha para soltar pipa, de brincar de vaquejada e pega-de-boi montado num cavalo de pau, de brincar de boneca, de sentar diante da casinha de boneca e dizer que é uma boa mãe?
Cadê o tempo para se sentir a pessoa mais feliz e importante do mundo porque a mãe vestiu uma roupinha nova, passou brilhantina no cabelo, perfumou o rosto e o pescoço, para o primeiro dia de aula, e vai todo imponente com o caderninho na mão e já sonhando em ser doutor de qualquer coisa? E bonito assim também vai namorar, logo pensa e sorri, e se alegra demais por dentro.
Cadê o tempo que é o tempo próprio dos meninos, das meninas, da criançada, dos pivetes e moleques viverem o seu mundo e procurarem sua afirmação através do lúdico, do encontro com as pequenas coisas, da construção do adulto de mais tarde a partir das simples descobertas infantis?
Menino nasceu para o seu tempo, para se esbaldar no seu tempo, brincar brinquedos de crianças, estudar coisas de crianças, aprender segundo suas próprias concepções. Menino nasceu para fazer o adulto feliz, fazê-lo alegre e contente, e não pra ajudá-lo a ganhar dinheiro, para fazer o seu trabalho, para viver o seu mundo. Ora, se o próprio adulto reclama da sina, que dirá a criança apta somente para o seu tempo.
Roubar da infância o seu tempo; fazer desse tempo o mesmo percurso dos adultos, é o mesmo que pretender ir entristecendo aos poucos um espírito que está pronto e capacitado somente para a alegria. E nesse contexto não sobrará nem tempo para o barulho do sorriso nem do choro, pois o corpo inteiro estará emudecido e paralisado diante daquilo que nem sabe o que é.
E como se sentirá uma criança que vai passando descalça, debaixo do sol escaldante, com uma enxada no ombro, em direção ao roçado adiante, ao ver outra criança de sua idade brincando de fazendeiro com pontas de vaca? Ou ainda como se sentirá aquele menininho que está com os dedos sangrando de tanto pegar em palma para cortar, quando enxerga adiante, indo pela estradinha, amiguinhos seus que seguem felizes para a escola?
Sei não, meu Deus, sei não! Com quantos lanhos e espinhos, braços e pernas decepadas se constrói uma infância? E de vez em quando o galo canta pensando que o menino vai levantar pra brincar.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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