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quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

MEMORIAL DO ANJO CAÍDO (Crônica)

MEMORIAL DO ANJO CAÍDO

Rangel Alves da Costa*


Os anjos não caem nunca, a não ser por falta muito grave os anjos não caem nunca, permanecendo sempre na sua moradia celestial e fazendo suas incursões perante as pessoas para cumprirem seus deveres de anjos: ser mensageiros dos desejos divinos, iluminar as pessoas nas suas ações, ser o amigo que protege na hora da precisão.
Mas como afirmado, se o anjo caiu foi porque cometeu uma gravíssima falta, de modo que os seus superiores tenham lhe expurgado das bonanças do paraíso e destinados a reparar pelo erro através do arrependimento e da dor. Mas onde? Muitas vezes ao lado daquele que um dia também foi anjo bom e pendeu para o mal.
Igualmente aos homens, os anjos também possuem livre-arbítrio e desse modo podem fazer suas escolhas. Ora, se os homens muitas vezes escolhem enveredar por caminhos sem honradez e virtudes positivas, bem assim pode ocorrer com os anjos, que por não aceitarem sua condição de submissão às forças superiores preferem semear a discórdia onde a paz tende frutificar.
Assim, semeando a discórdia para manifestarem um poder que não lhes é dado possuir, incorre no pecado, e tornam-se anjos caídos porque Deus não admite maldade naqueles que foram criados para o bem. E logo sentencia: “Deus não poupou os anjos que pecaram, mas os precipitou nos abismos tenebrosos do inferno onde os reserva para o julgamento” (II Pe 2, 4).
Contudo, um anjo existiu que foi castigado mesmo sem ter fustigado a ira divina, confrontado o poder de Deus ou mesmo desobedecido os mandamentos angelicais com severidade. Seu comportamento era simplesmente de anjo: servia como mensageiro e intermediador entre as coisas do céu e a humanidade, encorajava e apoiava os seres humanos, influenciava na vontade humana para seguir pelos melhores caminhos.
Porém cometeu um erro imperdoável: não observou os limites que se impõem entre os humanos e os seres celestiais e assim, ultrapassando seu poder de atuação, quis ser mais gente do que anjo, quis sentir muito mais os sentimentos próprios das pessoas, quis experimentar os pecados humanos. E o pior: tentou e conseguiu ser jovem por um dia, ser um belo rapaz por um breve espaço, e conseguiu. Mas foi a sua derrota.
Desceu ao amanhecer num trigal saído do orvalho e sentiu-se totalmente iluminado pelas belezas infinitas da natureza; passou os olhos pelos arredores e enxergou todas as possibilidades humanas diante da vida.
Tudo isso já sabia e sentia como anjo, mas agora tudo era muito mais forte porque sua energia já estava interligada com as forças da terra e do ambiente. O lado humano forçava a retirada do lado angelical, e logo pôde comprovar isso.
Saiu procurando estradas e quanto mais andava mais se afastava da pureza do anjo e abraçava o instinto humano. Aos olhos tudo simplesmente passou apenas a existir sem significados maiores. E maldisse as pedras da estrada, as veredas que encontrou, o cansaço e a sede que sentiu, a vontade de satisfação em qualquer coisa que lhe aparecia.
Ao entrar na cidade, caminhar pelas ruas e olhar os outros com frieza e distanciamento como quase todos fazem, ao chegar aos lugares e não falar com ninguém como os outros fazem, ao ver os outros como inimigos como os outros fazem, se fez totalmente pessoa, sem praticamente lhe restar nada do anjo de instantes atrás.
E mais adiante avistou aquela que logo lhe pareceu um anjo em pessoa, de tão bela, doce e meiga, a verdadeira perfeição em mulher. E todos os sentimentos afetivos, amorosos e de paixão caíram sobre ele como qualquer mundano. Os olhos brilharam de encanto e desejo, o corpo estremeceu pela súbita vontade de abraçá-la e beijá-la, o coração mergulhos nas águas mais tormentosas da paixão.
E ela enxergou-o do mesmo jeito, sentiu a mesma vontade e desejo. E passou por ele e não se conteve pelo perfume angelical e diferente que sentiu. Quis seguir adiante e olhou para trás. E ele não tinha mais asas, mais pureza, mais nada. Era anjo caído. Caído de amor humano que é tão doce e mortal, por isso tão imperdoável pecado quando se torna cego.
A nuvem desceu e abriu à sua espera no horário combinado. Mas ele já era anjo caído.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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