SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

A DOCE VIDA (Crônica)

A DOCE VIDA

Rangel Alves da Costa*


Quando se fala no sertanejo que vive nas áridas distâncias do fim do mundo, bem lá onde somente o homem da terra conhece e o olho da cidade não consegue enxergar, logo se imagina uma vida desesperadora, sacrificante e sacrificada, marcada pelo desvão da extrema miséria, da pobreza mais angustiante e da desesperança infinita.
Dependendo do ponto de vista de quem queira enxergar, aquilo tudo pode ser mesmo o lugar onde se concretiza sem disfarces as dores do mundo. Tudo de ruim certamente será encontrado por lá, coisas de espantar quem não conhece o sofrimento e desacreditar quem acha que já viu de tudo nessa vida. A dor é a dor, o padecer é o padecer, nada é mais ou menos, tudo é mesmo ou não é.
Certamente que será um espanto aos olhos do visitante. Rayban importado não terá o dom de esconder os olhos que se fecham de susto e temor. O coração nem se fala, pois este nem saberá qual sentimento expressar quando o menino passar correndo com um calango na mão. “Pai, pai, peguei um!”. E que nojo certo tipo de turista sente quando vê o barrigudinho meter a mão na cuia e depois ficar lambendo os beiços com papa-d’água.
Mas que mundo feio, esquisito, com um povo feio e também esquisito; casas desajeitadas, barracos caindo, moradias feitas ou sustentadas com restos de tudo. Não há roupa chique, brilhosa, de marca, limpinha e cheirosa e muito menos sapato marrom de bico fino ou sandália de legítimo couro não sei de onde. O povo parece nem saber conversar, pois se comunica com palavras que o sulista não entende e daquelas bocas parece jamais ter saído um eu te amo ou por favor. Tudo isso é verdade, meu senhor. Quem chega lá e não conhece sempre pensa assim.
Mas pensa errado, vê enviesado, sente desalinhado. Esse mundo estranho, espantoso, cheio de contradições e que inflama tantos corações e mentes é o verdadeiro mundo sertanejo e sua realidade mais pura. E por isso mesmo tão linda, tão bela, tão verdadeiramente sertaneja, sem falsear nada, sem jamais querer inventar dentro da razão do seu povo.
Aquele povo triste, com feição sofrida, olhos desanimados e distantes, se engane não que é a gente mais feliz do mundo, o povo mais verdadeiramente realizado na face da terra, pois autêntico, honesto e trabalhador. E digo mais que não há dinheiro do mundo que faça a gente rica da cidade grande ter uma vida tão fecunda e completamente justificada na vida do que a do sertanejo.
Pode olhar. A casa parece que nem existe de tão pequenina, pobre, caindo aos pedaços. Como bem diz a placa colocada mais adiante na parede de barro, ali mora uma família feliz porque abençoada por Deus. Dois tamboretes, um fogão de lenha, trempes para colocar dois potes, uma moringa sobre a mesinha de antigamente, bugigangas e tarecos pendurados por todos os lugares. Talvez sinta um cheiro de feijão no fogo, talvez um preá esteja cozinhando sem óleo na panela de barro.
Lá fora, no quintal ou mais adiante, nos descampados ou matarias, as crianças estarão brincando com suas riquezas: resto de toco que vira carro, ponta de vaca que vira boi, terra cavada que vira tanque, mijo que vira água, três pedras que viram a sede da fazendinha. E por ali estará o cachorro amigo, o papagaio ousado, o passarinho que já é da família, a cobra que nem se importa mais com aqueles calcanhares magrinhos.
A menina moça beijou o pai porque ele trouxe da feira dois metros de pano de chita; a mãe sabia que um dia ia ganhar uma panela de alumínio e agora ela chegou. Mas o marido disse que por causa da panela só deu pra compra um quilo de carne com osso. Tinha nada não, pois ela ia fazer um ensopado de palma com nambu que o mais velho matou.
Nesse dia o velho sertanejo catou a velha viola e cantou Tonico e Tinoco. Só não cantou mais para não chorar. E depois todo mundo se espalhou, todo mundo foi olhar o maior e mais escaldante sol do mundo, beijar o luar do sertão, tocar a estrela com a mão e ouvir o canto do sabiá.
Essa sim, seu moço, essa é que a doce vida. Não troco a que tenho porque sou de lá, também sei violar ao luar, sei amar esse sertão, sei com a terra namorar. E apaixona de não querer sair mais de lá.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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