DESCONHECIDOS – 36
Rangel Alves da Costa*
No dia seguinte a esse encontro revelador, a comitiva embarcou na aeronave rumo à região nordestina. O grupo de viajantes era formado pela viúva Doranice, o menino Carlinhos, o neto da Condessa, que é o rapazinho Yula e mais os ajudantes. Estes já eram empregados da viúva e por isso mesmo já conheciam perfeitamente as suas exigências. Não sabiam, contudo, que para onde iam tudo era muito diferente e difícil.
Mesmo morando na metrópole nova-paulina há muitos anos, a viúva conhecia muito bem a região de onde partira um dia com uma mala carregada de sofrimentos e sonhos. Retornar agora à região não seria, pois, um ato impensado, sem claras motivações e com destino certo. Não seria uma estranho no ninho, como se dizia.
Ademais, mesmo que essa viagem objetivasse visitar a maior área possível, tudo teria que ter início nas proximidades do seu berço de nascimento, junto à localidade que os olhos passeavam embaixo do sol na infância e mocidade. A terra haveria de reconhecer a filha que voltava para agradecer através de benfeitorias.
Da capital, sem qualquer demora, rumaria sertão adentro, cortando estradas e sem pressa de chegar. Sem pressa porque não adiantava querer apressar o tempo passando por lugares onde o tempo parecia ter parado, onde a vida se fazia hoje como havia sido ontem, anteontem e num passado mais distante. Quem passasse por uma cancela aberta não era difícil de encontrá-la do mesmo modo nos dias seguintes.
Naquela região era assim, ainda lembrava, com pessoas lutando com todas as forças para viver o seu dia, para ter o de comer, beber e alegrar um pouco o semblante marcado pelas durezas do tempo. E como o tempo era difícil para muitos, e em todos os sentidos. O tempo da plantação que nunca vinha por falta de chuvas, o tempo de não colher, o tempo de ter esperança e desesperançar. O verdadeiro tempo do Eclesiastes.
Por isso que ela até hoje tinha o livro bíblico do Eclesiastes como sua leitura de cabeceira. E as passagens que mais gostava, por trazer tantas recordações, diziam:
“Vaidade das vaidades, diz o Eclesiastes, vaidade das vaidades! Tudo é vaidade. Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol? Uma geração passa, outra vem; mas a terra sempre subsiste. O sol se levanta, o sol se põe; apressa-se a voltar a seu lugar; em seguida, se levanta de novo. O vento vai em direção ao sul, vai em direção ao norte, volteia e gira nos mesmos circuitos. Todos os rios se dirigem para o mar, e o mar não transborda. Em direção ao mar, para onde correm os rios, eles continuam a correr. Todas as coisas se afadigam, mais do que se pode dizer. A vista não se farta de ver, o ouvido nunca se sacia de ouvir. O que foi é o que será: o que acontece é o que há de acontecer. Não há nada de novo debaixo do sol. Se é encontrada alguma coisa da qual se diz: Veja: isto é novo, ela já existia nos tempos passados. Não há memória do que é antigo, e nossos descendentes não deixarão memória junto daqueles que virão depois deles”.
E também:
“Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo dos céus: tempo para nascer, e tempo para morrer; tempo para plantar, e tempo para arrancar o que foi plantado; tempo para matar, e tempo para sarar; tempo para demolir, e tempo para construir; tempo para chorar, e tempo para rir; tempo para gemer, e tempo para dançar; tempo para atirar pedras, e tempo para ajuntá-las; tempo para dar abraços, e tempo para apartar-se. Tempo para procurar, e tempo para perder; tempo para guardar, e tempo para jogar fora; tempo para rasgar, e tempo para costurar; tempo para calar, e tempo para falar; tempo para amar, e tempo para odiar; tempo para a guerra, e tempo para a paz. Que proveito tira o trabalhador de sua obra? Eu vi o trabalho que Deus impôs aos homens: todas as coisas que Deus fez são boas, a seu tempo. Ele pôs, além disso, no seu coração a duração inteira, sem que ninguém possa compreender a obra divina de um extremo a outro. Assim eu concluí que nada é melhor para o homem do que alegrar-se e procurar o bem-estar durante sua vida; e que comer, beber e gozar do fruto de seu trabalho é um dom de Deus. Reconheci que tudo o que Deus fez subsistirá sempre, sem que se possa ajuntar nada, nem nada suprimir. Deus procede desta maneira para ser temido. Aquilo que é, já existia, e aquilo que há de ser, já existiu; Deus chama de novo o que passou. Debaixo do sol, observei ainda o seguinte: a injustiça ocupa o lugar do direito, e a iniqüidade ocupa o lugar da justiça. Então eu disse comigo mesmo: Deus julgará o justo e o ímpio, porque há tempo para todas as coisas e tempo para toda a obra. Eu disse comigo mesmo a respeito dos homens: Deus quer prová-los e mostrar-lhes que, quanto a eles, são semelhantes aos brutos. Porque o destino dos filhos dos homens e o destino dos brutos é o mesmo: um mesmo fim os espera. A morte de um é a morte do outro. A ambos foi dado o mesmo sopro, e a vantagem do homem sobre o bruto é nula, porque tudo é vaidade. Todos caminham para um mesmo lugar, todos saem do pó e para o pó voltam. Quem sabe se o sopro de vida dos filhos dos homens se eleva para o alto, e o sopro de vida dos brutos desce para a terra? E verifiquei que nada há de melhor para o homem do que alegrar-se com o fruto de seus trabalhos. Esta é a parte que lhe toca. Pois, quem lhe dará a conhecer o que acontecerá com o volver dos anos?”.
Para Doranice, esse tempo de vaidades era curto demais para muita gente daquela região, pois passava pela vida quase sem tempo para viver. E agora estava retornando primeiro para o espanto, talvez, e depois para a satisfação. Se dependesse dela sofrimentos seriam minimizados e esperanças renascidas. Ao menos era isso que esperava.
Assim, após a chegada na capital, a comitiva embarcou num micro-ônibus fretado. Os viajantes olhavam pela janela as paisagens de um mundo totalmente novo que se descortinava.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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