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sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

O LIVRO DAS HORAS (Crônica)

O LIVRO DAS HORAS

Rangel Alves da Costa*


Serei breve. Não posso escrever muito, não posso escrever quase nada. Olho o relógio, o tempo passa, o tempo tem asas, o tempo é vento, é ventania.
Talvez umas poucas palavras. Frases desconexas, construídas desconstruindo, pois sem tempo pra pensar, pra conciliar o pensamento com o nexo, o lógico, o estético.
Quase nada do que imaginava escrever, que era muito, era tudo, era a vida, o passado, o presente e até o futuro, caberá no relógio da parede, no meu braço que olho nervoso, no som do tempo que passa, e marca, compassa, destrói, ameaça e desgraça no último instante, no último minuto, no segundo que jaz, sem qualquer tempo mais, pois cinzas, cinzas das horas.
Queria lembrar alguma coisa, alguma coisa importante, de ontem, de anteontem, de outro tempo, para escrever agora como testamento de tudo que fiz durante esse percurso, mas não tenho mais tempo, no tempo que falta, pois já vejo o ponteiro dobrando a esquina, entrando na sala, tomando o meu lugar, num tempo de morte que quer me matar.
Jurei que não ia um segundo além, nem uma fumaça, um pó, um grão, da hora marcada. Pensei que o relógio estava atrasado um segundo e quando fui escrever a última palavra tudo parou, tudo acabou, tudo sumiu num tempo que nada restou.
Puxei o relógio, joguei na parede, esbagacei com tudo, destruí os ponteiros, fiz sumir as horas, espantei os minutos, soprei os segundos, matei o tempo também. Mas o sol agora repousa no mesmo lugar da janela, se estendendo sala adentro, dizendo que já é hora, fazendo o tempo surgir novamente.
Tranco a janela, fecho a porta, impeço que o raio do sol do meio dia entre por qualquer lugar para me lembrar do tempo, que já é tempo, que ainda há tempo, mas não tem jeito. E vem um tal de relógio biológico lembrando para fazer isso ou aquilo, pois é hora, está na hora de tudo.
Tudo, menos isso. È insuportável que qualquer coisa queira lembrar de tudo. E começo a ouvir o relógio da igreja, o apito do trem, o despertador que logo deixará de existir, a vizinha, o outro que grita: tá na hora, se apresse, é meio dia, só faltam alguns instantes!
Gostaria de quem tivesse inventando a hora e o relógio tivesse perdido seu tempo. Se eu estivesse naquele instante diria que já basta o princípio e o fim, o nascimento e a morte, a partida e a chegada. Assim, não tinha nenhuma necessidade de separar períodos para que outras coisas aconteçam em determinado tempo, em certas horas, em minutos ou segundos. É um martírio que se alastra, que só quem vive o momento fatal percebe o quanto é dolorido.
A fome, o sono, o cansaço do dia, a escrita cotidiana, a leitura imprescindível, o lanche, a dose, a pinga, o cigarro, o olhar a esquina, o abrir e fechar a porta, o tirar a roupa no varal porque vai chover, o acender a luz para fugir da escuridão, o carteiro que chega, a campainha que toca, o jogo que começa, tudo que começa, tudo, porque tudo vai acontecer. E acontece sempre no seu tempo, em determinada hora, daqui dez minutos.
E por que tudo marcado, tudo determinado, tudo lembrado a partir de um ano, de um mês, de um dia, em determinada hora. E antes dessa hora quanta dor, quanto grito, quanto susto, quanto espanto, quanta irritação, quanta indignação, quanta esperança, quanta alegria, quanta desesperança, quanta tristeza, quanto um monte de coisas se junta para tudo acontecer num determinado instante.
Morreu ontem e o enterro vai ser amanhã tantas horas. Nasceu um dia e até hoje parece que não viveu. Ainda com tão pouca idade e já parece que encontrou o seu tempo na vida. Já idoso e vive como criança que nasceu ontem.
Porque ela vai chegar amanhã de manhã, no ônibus que chega às dez, mas só deve entrar por aquela porta ao meio dia. Vai descansar até a tarde e rever a família até o anoitecer. Depois disso, quando a lua sair, lá pelas seis horas, vai fazer sua prece e pedir que tenha muitos anos de vida. Às sete horas vai colocar a cadeira da calçada para sonhar com o luar, chorar de saudade e morrer no instante seguinte.
Ora, mas tudo acontece assim. Tenhamos tempo ou não para perceber isso.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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