SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 27 de fevereiro de 2011

DIÁRIO DA DESPEDIDA (Crônica)

DIÁRIO DA DESPEDIDA

Rangel Alves da Costa*


Ao adormecer sonhou um sonho tão bonito como jamais havia sonhado em seu longo percurso de vida.
Sonhou que era uma bela rainha, morando num palácio lindo, cujo jardim de tão extraordinariamente belo se confundia com a mais bela imaginação.
Vivia no luxo e no fausto, passeando pelos canteiros floridos e pisando em gramas verdejantes e macias feito algodão doce.
Ouviu alguém gritar no castelo e era um chamado aflito, e dizia ainda que arrumasse logo as malas que iam partir com urgência e nunca mais voltar ali.
Dizia que na vida não havia mais lugar para princesas, castelos nem fantasias e que dali em diante teriam que viver num mundo de verdade.
E disse ainda que se despedisse de vez da ilusão, pois o seu passo seguinte seria enfrentar a vida como pessoa normal, portanto na desilusão, na desesperança e no sofrimento.
Na vida de tantas lutas, de tanto fazer sem ter nenhum reconhecimento, o seu consolo seria se cansar exaustivamente da labuta do dia para adormecer um sono só e, ao invés de qualquer sonho, lhe tomar os pesadelos e os suores da noite.
E assim acordou sobressaltada na madrugada. Nem o galo havia cantado e saiu tateando pela escuridão do quarto em busca de qualquer luz. Lembrou de abrir a janela. Que bom que havia uma janela...
Olhou adiante e lá fora somente o silêncio do tempo e o barulho dos bichos. Ouvia bem o piar do anum, o farfalhar da árvore, o ruflar de asas já tão apressadas, o berregar do cabrito, o latir do cachorro e o crocitar do carcará. Lembrou quando era bem jovem e remedava cada passarinho e cada bicho.
Deixou a janela aberta e se dirigiu até a cozinha. Abriu a porta, espantou a galinha que estranhamente ainda dormia ao lado. Saiu mais pra fora, levantou a vista para o alto e viu o mundão que já tomava jeito de amanhecer.
No jeito daquela barra não tinha como chover por aqueles dias. Se demorasse mais alguns meses sem pingar água nenhum bicho ia agüentar mais. A mataria já estava toda cinzenta; água em tanque e em barreiro não existia mais. Até o pote tava com sede, moringa estava bebendo do barro.
Fazer o que, se não tinha mais forças pra nada, se não agüentava nem andar mais duas léguas pra ir a qualquer lugar? Se o mundo dissesse que ia acabar começando por ali, tinha que esperar que tudo acontecesse sem poder sair do lugar.
Destino é destino, minha gente; destino é destino; mas sorte não é não é pra todo mundo não. Se tem gente que nasce rochedo, depois vira pedra de estrada, pra mais tarde virar pó e poeira é porque deu sorte, mas tem gente que não é assim não. Nasce na pobreza, a vida nunca melhora em nada e tem certeza que vai morrer na miséria maior ainda.
Essa era vida dela. Nasceu sem ter nada e até hoje nada tinha, ainda que as mãos fossem totalmente calejadas, a pele marcada pelos combates no campo, as pernas estropiadas de não suportar mais em pé, mostrassem que trabalhou na maior dureza por toda a vida.
Trabalhou sim, na maior dureza por toda a vida. Só não foi quenga, mas o resto pode dizer de sua luta. E o que restou agora, sozinha, doente, com essa idade, sem ter mais esperança de nada. E é isso que a pessoa merece?
Juntou gravetos, jogou um pouquinho de querosene, acendeu o fósforo e esperou a chama subir e depois arrefecer. Gostava de café torrado no pilão, e assim aquele aroma delicioso de café saiu da cozinha e se espalhou pelo arredor.
Pegou a caneca e foi se assentar com sacrifício num banquinho debaixo dum pé de pau, logo em frente da casinha. Quase não chega; as pernas não davam mais. Não demorou muito e as lágrimas foram se ajuntando aonde havia café.
E tudo tão triste, solitário, angustiante. E veio novamente o sono, sono de dormir ali mesmo. Foi deitar mais um pouquinho na cama e quis sonhar com a morte para ver se era melhor que a vida.
E conseguiu. Só que não acordou mais...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Julio Cesar disse...

Muito bom Rangel.

Gostei por demais.

Grande abraço