SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 12 de fevereiro de 2011

A PORTA (Crônica)

A PORTA

Rangel Alves da Costa*


E por que a porta, se ela está trancada, ficou semiaberta, se move com o vento, vai cair, não há fechadura, nem chave, nem nada?
Ora, porque a porta é a casa inteira, é por ela que entra e sai a vida, que o mundo se forma, que a vida se faz, que faz fronteira entre o conhecido e o desconhecido.
Porque a porta sempre espera alguém. Aberta, fechada, somente empurrada, sempre espera alguém. E alguém que saia ou que entre, que não vai sair nem entrar, mas fica indagando curiosamente sobre o outro lado da porta.
Porque a porta é o verdadeiro coração da casa, com muito mais sentimentos do que os moradores ou estranhos. Da porta se chama, se implora, pergunta se está e para onde foi; dela sai o grito desesperado pelo que acontece lá fora; reflete nos seus quatro lados toda alegria, tristeza, esperança e desilusão.
Porque atrás da porta alguém espera o outro chegar; ao abri-la sente os olhos brilhar, o corpo tremer, a vontade de abraçar e chorar. Embaixo dela vê o tempo passando e nada acontecer, o relógio correndo e nada de chegar, nada de passar, nada que se aviste ao longe e faça o coração disparar.
Porque antes de sair pela porta abraça os filhos, olha carinhosamente para a esposa, dá os últimos beijos e abraços, jura por Deus e tudo na vida que logo estará de volta. E após ultrapassá-la vem a incerteza, o sofrimento apressado, a tristeza já infinita, e nem olha mais pra trás, para os que estão chorando na porta, porque não agüenta mais.
Porque na porta se dá o adeus, se despede e retorna, dá um sorriso e gesticula que entre e sente. E porque ela está aberta, se diz que não vá agora, ainda está cedo, o tempo lá fora está esquisito, parece que vem trovoada, os pingos já começam a cair. Feche a porta enquanto o tempo não muda de novo.
Porque depois e atrás da porta o tempo não muda nunca. Quem está por trás da porta nas quatro paredes parece sentir-se prisioneiro de ontem, da solidão, da angústia, da mesmice nessa saudade que sempre chega a qualquer momento. E não há porta que se abra e traga de volta aquilo que o coração tanto quer.
Porque na porta o namorado chega envergonhado, cabisbaixo, trazendo na mão uma flor. Seu sonho é logo chegar ali com uma aliança e um buquê. Mas o tempo anda ruim, tudo está muito difícil, a felicidade tem batido pouco na sua porta. E na porta ela espera até que tragam a cadeira ou mandem entrar. Prefere sentar do lado de fora porque fica mais fácil roubar um beijo.
Porque pela porta chega o carteiro, bate o vizinho, chama alguém que precisa de um pouquinho de sal, um tiquinho de açúcar, uma xícara de farinha. E chega o amigo trazendo de presente um preá, uma codorna ou uma melancia. E qualquer dia desses a porta ficará aberta a noite todinha por causa de um forró que o compadre prometeu.
Porque a porta tem o poder de alegrar ou entristecer, de fazer sorrir ou chorar, de dar vontade de fechá-la de vez e desabar pelo mundo. Assim que é aberta logo na madrugada, dela se avista a barra, conhece o tempo, vem a certeza de mais um dia de sol ou de chuva. Se vai trovoar o vento entra porta adentro e é bom demais, se não fosse o perigo dela cair com barraco e tudo.
Porque pela porta pessoas são carregadas direto pro cemitério; muitos colocam o pé adiante, avançam na porteira e nunca mais retornam. Outros caminham pelo mundo afora e o destino faz com que retomem o caminho de casa e batam na porta e molhem os olhos da família, ficando ali para não mais partir.
Porque a porta deveria não existir. Não há coisa mais triste, amedrontadora e traiçoeira do que uma porta. Ela não toma partido nenhum entre o que está dentro e o que está fora, deixando-se simplesmente ser aberta para o que possa acontecer. E é por isso que onde não existe porta não há surpresa nem aflição. Também porque não existe ninguém.
Porque a porta um dia se fechou por conta própria e nunca mais ninguém tocou na sua madeira nem tentou abri-la. Vieram, arrancaram ela e fecharam o vazio com tijolos. Mas antes disso a porta saiu e foi ficar vendo o mundo através da janela.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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