SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 19 de maio de 2011

DIÁRIO DA ÚLTIMA VIAGEM (Crônica)

DIÁRIO DA ÚLTIMA VIAGEM

Rangel Alves da Costa*


Acordei ainda na madrugada, com as paisagens escurecidas, galos ainda adormecidos, nenhum cantar de passarinhos, apenas os sons das folhagens das árvores. Um leve vento soprava, um clima de paz e tranquilidade por todos os lados. Creio que umas três horas da madrugada.
Assim que o galo oficialmente anunciou que o dia estava amanhecendo, já estava despejando o café de pilão numa xícara, autenticamente café gordo e saboroso, sem qualquer outro acompanhamento, e em seguida saí para a malhada, para frente da casinha, para apreciar toda aquela maravilha de amanhecer. Tudo por volta das quatro do alvorecer.
Ali em meio à natureza, apreciando tão belas e singelas paisagens, olhava e via em cada coisa, em cada objeto, até mesmo numa pedra solitária a vida em sua perfeição. Talvez nem o invisível pó que passeava no vento deixava de ter significado. Basta ver que o pólen das flores é levado pelo vento e mais adiante se instala e em outras plantas para reproduzir e florescer.
As folhas secas que se espalham e se acumulam pelo chão servem para que os passarinhos as recolham no bico para a construção do seu ninho. Assim também é feito com os pequeninos gravetos e garranchos. Quando a chuva cai e junta água nos barreiros é tempo de o João de Barro construir, pois seria impossível fazer o seu ninho de quarto e sala sem o barro umedecido.
Passarinhos e outros bichos vivem e se alimentam da própria natureza, daquilo que a mata dá, das frutas e frutos que brotam das árvores e plantas. Até as plantas floridas dependem de outros bichos no seu processo de desenvolvimento e gestação, como as abelhas dependem do néctar e o colibri do beijo na flor. Onça come cobra, que come o ninho do passarinho, principalmente os ovos e as pequenas crias. Assim, a natureza se alimenta da natureza para sobreviver.
Pensando nesse monte de coisas, quando dei por mim já estava perto das cinco da manhã. Havia programado exatamente esse momento para partir, para seguir adiante em viagem curta, porém muito importante e com significado muito especial. Iria andar cerca de dois quilômetros, cortando estrada e passando por trilhas e veredas, até encontrar o sopé da montanha que se avistava imensa ainda da malhada da casinha.
Às cinco horas peguei o alforje, o cantil, uma bengala de madeira para servir de apoio e segui adiante, calçado na velha alpercata de couro cru e fiz a cancela gemer enquanto passava. É gemido canto, canto lamento, gemido já quase saudade.
Os caminhos que levam à montanha não possuem nenhuma surpresa ou assombro. Bicho ali só se assusta com o homem e não assusta ninguém, bastando ter o cuidado de não pensar em atacá-los sem que eles queiram atingir. Cuidado somente com as cobras, que gostam de ficar escondidas nas beiradas de estrada esperando o calcanhar da pessoa que passa.
Nessa hora da manhã os bichos estão em correria porque precisam se alimentar, fazer deslocamentos de um lugar para outro, seguir para uma mataria onde tenham mais conforto e comida. As plantas ficam olhando para o chão para se admirar com os frutos que despencaram durante a noite. As folhas só não estão mais alegres e farfalhando ruidosamente porque ainda estão se secando da umidade orvalhada que as recobre.
Ando devagar porque não tenho pressa, como me faz lembrar a canção. Já cinco e meia e somente agora entro na veredinha que leva ao sopé da montanha. Antes de subir, um tanto mais difícil do que andar, sento numa pedra parecendo que esculpida à mão. Outras pedras se espalham adiante e fico imaginando quantos anos elas poderiam ter e quais os sentimentos que expressam dia e noite naquele mesmo jeito de viver. Dizem que muitas delas voam à noite com asas formadas de areia, mas só vendo para acreditar.
Subi lentamente, de modo a evitar tropeços e escorregões, sempre ladeado por cactos e bromélias próprios daquele lugar. Vi muitos ninhos de passarinhos construídos sobre as rochas e silenciosamente passei bem pertinho de uma colméia. Pelo jeito o zangão não estava zangado. Já eram seis horas quando cheguei ao ponto mais alto da montanha.
Havia subido ali precisamente para apreciar a natureza e o poder imenso da criação divina. Contudo, com o coração cheio de alegria e agradecimento, apenas passei os olhos ao redor, pois desde que acordei já estava na presença de Deus, naqueles instantes maravilhosos e sempre.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: