SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

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terça-feira, 31 de maio de 2011

TEMPESTADE - 22 (Conto)

TEMPESTADE – 22

              Rangel Alves da Costa*


O menorzinho dos filhos de Julião e Gecineide, portanto irmão de Totinha, antes de se dirigir pra debaixo da cama segundo a ordem recebida, chamou os pais, pediu que se abaixassem e disse bem juntinho dos ouvidos:
“Deixe eu ficar com vocês porque a cobra vai pra lá debaixo da minha cama. Eu sei que ela vai papai e é uma cobra bem grande, desse tamanhão. Só é eu chegar lá e ela vai aparecer logo logo porque ela vem na água. Eu já tô sentindo até ela chegar e se bater toda gelada em mim. Deixa papai, deixa mamãe?”.
Mas o pai logo desconversou e disse que ele deixasse de invenção e fosse logo pra debaixo da cama antes que o telhado caísse de vez por cima de todo mundo. Então Zezeu, pois esse era o apelido dele, baixou a cabeça e com o rosto mais triste do mundo seguiu em direção ao local onde estava sua caminha.
A mãe, entristecida com esse fato, desgostosa porque não gostava de se meter nas ordens do marido, sentia que precisava conversar com este sobre o pedido do menino. Havia olhado nos olhos do filho e não tinha dúvidas do verdadeiro medo instalado naquela criaturinha. Mas com a pressa do homem para saírem dali e se arrastarem lá por debaixo, ficou apenas com a palavra entalada na garganta.
Quando os dois rolaram pelo chão tomado de água por debaixo do estrado, ela perguntou se ele estava bem, se já tinha se acomodado direito, pois precisava dizer uma coisa, e o mais depressa possível. “Mas que conversa é essa mulher, logo numa hora aperreada dessas?”, resmungou Julião, como se precisasse do silêncio para pensar no que fazer.
Silêncio só se fosse o da palavra, pois o dilúvio acompanhado de ventania e trovões estava cada vez mais forte, mais barulhento, mais amedrontador. Sem falar no barulho das águas lá fora passando por cima de tudo e do restante do telhado que parecia todo se movendo, rangendo ruidosamente pra se quebrar todo e despencar. Mas nem o silenciar completo da palavra se fazia, pois o menininho Zezeu chorava, gritava, pedia socorro e ninguém ouvia.
Mas lá no seu quarto, quase forçando a permissão do marido, Gecineide começou, devagarzinho, quase sem poder falar de tanta dor no coração: “Por que não ouviu Zezeu e deixou que ele viesse ficar aqui com a gente, homem de Deus? Coração de menino não mente, se ele estava dizendo que aquilo podia acontecer era porque sabia de alguma coisa, tem o pensamento pra essas coisas, você sabe bem disso...”.
“Do que é que você está falando mulher?”, perguntou, parecendo não estar dando muita importância ao que ela dizia. E ela prosseguiu: “Estou falando daquela conversa da cobra, estou dizendo que Zezeu disse que uma cobra bem grande ia aparecer por lá no quartinho dele e você não quis acreditar, não quis deixar ele vim ficar aqui com a gente...”.
“Mas mulher, aquilo era só conversa de menino com medo de ficar debaixo da cama. Todo menino tem medo de ficar debaixo da cama por causa daquelas conversas que diz que lá tem bicho-papão, tem bruxa que pega menino que não dorme, essas coisas do arco da velha. Não lembra dessas histórias não? Pois se alembre que você mesma inventava umas das boas...”.
E quase chorando ela tentava continuar falando: “Lembro sim, mas agora estou falando de outra coisa. Estou dizendo que se Zezeu disse que ali vai aparecer uma cobra é porque vai mesmo aparecer uma cobra, e cobra como ele disse, tenho certeza. E quer saber por que tenho certeza, por que sei que meu filho não mente pra essas coisas, quer saber?”.
“Diga mulher, diga...”. Então ela respirou mais profundamente e procurou dar firmeza às palavras:
“Quem disse a você, mesmo sem jamais ter ido lá ou saber de sua existência, que o cavalo preto de compadre Afonsino estava preso lá nos arames? Quem disse a você que o filho da vizinha estava engasgado com a chupeta, e se você não sai correndo daqui a criancinha tinha morrido? Quem disse a você que a melancia que você escondeu debaixo da ramagem para não ser roubada já estava madura, mesmo sem nunca ter ouvido um tiquinho dessa história? Quem foi que outro dia disse a você que nem fosse pela estradinha perto da fazenda Luarado que a ponte de madeira havia caído? Vá, Julião, veja se lembra de tudo isso e lembra também quem disse tudo isso sem ao menos saber de nada ou jamais ter visto nada daquilo que falou? Lembre Julião...”.
“Danou-se, mulher, pois é verdade. Zezeu, mesmo sem quase falar direito, foi quem disse essas histórias todinhas. Então, então, então esse negócio de cobra pode ser...”. E deu um pinote por baixo da cama que levantou o estrado, virou a cama completamente, e saiu correndo, acompanhado da desesperada Gecineide que vinha atrás.
“Zezeu meu filho, Zezeu, você está bem?”. E quando chegaram à porta do quartinho ouviram uma mistura de gritos e gemidos roucos, vindos de uma face que já estava praticamente sem cor, e bem ao lado dela, com os olhos mais acesos que vagalume e língua parecendo agulha passeando ao redor da boca, a serpente estava esperando somente um momento a mais para dar o bote.
“Valei-me Deus, valei-me minha Nossa Senhora, valei-me meu São Bento protetor, valei-me que essa desgraça mordeu meu filhinho!...”, gritava desesperada a mulher, enquanto Julião avançava sobre a jararaca com um pedaço de ripa na mão.
Num gesto, jogou a caminha pelos ares e quando a víbora virou a cabeça na sua direção para dar o bote, num golpe certeiro atingiu-lhe a cabeça, ficando o corpo inteiro se debatendo no chão molhado, espalhando o sangue pelo aguaceiro.
Apanhou rapidamente o menino no chão e foi entregar nos braços da mãe, mas esta estava lá por cima das nuvens, às portas do céu, rezando alto para que São Bento, protetor contra ataque de cobras, lhe ouvisse:

“Pela primeira chaga de Cristo,
Livrai-me São Bento;
Pela segunda chaga de Cristo,
Livrai-me São Bento;
Pela terceira chaga de Cristo
Livrai-me São Bento;
Pela quarta chaga de Cristo,
Livrai-me São Bento;
Pela quinta chaga de Cristo,
Livrai meu filhinho dessa cobra
Que é bicho peçonhento”.

Totalmente entregue à sua fervorosa oração, a mãe nem se deva conta que o esposo chegava a gritar para que ela segurasse e cuidasse do filho. Só voltou a si porque ouviu o próprio Zezeu dizer: “Mamãe, obrigado por ter acreditado no que eu falei”.

                                                continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com


      

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