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domingo, 15 de maio de 2011

TEMPESTADE - 6 (Conto)

TEMPESTADE – 6

Rangel Alves da Costa*


Arrependido por ter se submetido a ouvir tal confissão, para liberar Rosinha, vez que dificilmente ela teria salvação mesmo, o seminarista Tristão pediu que ela ouvisse atentamente o que ele tinha a dizer por último e depois de suas palavras seguisse o que achasse melhor para o seu nome e sua reputação, vez que penitência nenhuma surtiria efeito se ela continuasse se comportando daquele jeito. Então disse:
“O juízo final vai julgar toda a sua vida e não apenas o seu lado ruim. As boas virtudes sempre têm um peso maior do que os erros cometidos. Não precisa rezar mil ave-marias nem dez mil pai-nossos. O que você pode fazer e surtir um bom efeito, ainda que não sinta, é pensar nesses tantos erros cometidos, pensar se o que fez e o que faz está correto. E se achar que fez alguma coisa errada se arrependa, se arrependa muito e na medida do erro. O arrependimento é uma forma útil de receber a justa atenção de Deus. Agora pode ir”.
Nem teve tempo de sair um instante do confessionário para tomar fôlego e chegou Filó batendo na janelinha: “Pode ouvir agora minha confissão seminarista Tristão, pois o mundo ainda tá se acabando lá fora e preciso morrer sem ter pecado nenhum a esconder. O Senhor há de me perdoar pelas besteirinhas que cometi...”.
E Tristão logo observou: “Se seus pecados disserem respeito a traição, a sexo proibido, a coisas que mulher casada não deve fazer e faz, então já está dispensada. Pelos outros pecados que acaso tenha reze vinte ave-marias, durante três dias, se arrependa dos erros cometidos e pronto. Agora vá...”.
“Mas Tristão, eu nem posso falar da fraqueza da carne, do pecado que vem tomar conta de mim em noites de lua cheia?”, perguntou a beata. “Não e não. Sobre safadeza eu já ouvi demais por hoje e até fico imaginando o que sairá da boca suja de cada uma de vocês. Agora vá...”. “Mas Tristão, nem do nego d’água eu posso falar?”. “Mas que nego d’água é esse?”, indagou o seminarista, intrigado. “Um nego d’água que aparece quando eu vou tomar banho no riachinho e...”. “Pare, pode parar. Já sei o que você e esse nego safado vão fazer. Pode parar e chispa daqui”.
Ao sair do confessionário Tristão percebeu que uma verdadeira fila estava se formando para confissão. Imediatamente mandou que todas saíssem de onde estavam e fossem sentar, pois precisava dizer-lhes algumas palavras. Quando todas se acomodaram, ele iniciou uma rápida e necessária pregação:
“Já há alguns dias que nos reunimos aqui para ler e analisar as lições e os ensinamentos bíblicos. Quando vocês chegam, dentro do horário e sem nunca faltar, logo penso quanta responsabilidade religiosa vocês estão tendo. Sem falar nas caras tristonhas, na bíblia que trazem à mão, os xales cobrindo as cabeças, as vestimentas comportadas que usam. E tudo isso me alegrava muito porque pensava que estava diante de mulheres devotadas, com vocação o respeito e a difusão de tudo que aqui estava sendo discutido. Contudo, foi preciso que essa tempestade caísse para que o véu de vocês caísse também e a face do pecado começasse a aparecer. Agora vou fazer uma pergunta: quem estava na fila para se confessar não ia falar sobre pecados relacionados ao adultério, aos amores extraconjugais, a pouca vergonha? Olhem pra mim e respondam...”.
Todas ficaram de cabeça baixa, olhando por baixo para as feições uma das outras, num sorrisinho sarcástico que parecia jovem querendo desfazer de desafeta. Mas Custódia falou: “Qual o pecado da mulher casada, se não for traindo o marido?”.
E o seminarista continuou: “Abrir a boca pra dizer uma blasfêmia dessas já é pecado mortal. Acho não, tenho certeza que vocês se revestem de fervorosas religiosas para tentar encobrir tantos pecados. Imaginam que o povo, vendo-as passar de bíblia na mão, xale na cabeça, semblante de devoção, irá pensar que são as pombinhas da paz. Sabem quantos pecados cometem com tais atitudes? E eu achando que estava realmente diante de pessoas sérias, bem casadas, conjugalmente honradas, exemplos para as demais pessoas. Mas não, o que vejo são umas pecadoras até nas sombras. Estarei mentindo, hein, estarei mentindo?
E continuavam de cabeça baixa. Ainda nessa posição, se ouviu a voz de Custódia: “Juro por Deus que sou mulher honesta, sem nenhum arranhão na minha vida de casada que possa me desonrar...”. E foi a mais completa zombaria, com as outras rindo baixinho e falando coisas para a vizinha de assento.
“Calem a boca, ou melhor, fechem a boca. Atire a primeira pedra aquela que não pecou pelo pecado da traição. Pobres maridos, pobres homens, muitas vezes saindo para trabalhar e vocês na cama da maldição. Lembram dessas palavras bíblicas?...”. E passou a ler passagens do livro sagrado:
“Vejam o que está contido no Êxodo 20,14: Não cometerás adultério.
Diz Provérbios 30,20: Tal é o procedimento da mulher adúltera: come, depois limpa a boca, dizendo: Não fiz mal algum.
Está em Levítico 20,10: Se um homem cometer adultério com uma mulher casada, com a mulher de seu próximo, o homem e a mulher adúltera serão punidos de morte.
Ezequiel 16,38 não deixa dúvidas: Eu infligirei o castigo às adúlteras e às criminosas, e contra ti desencadearei meu furor e meus ciúmes.
Em Provérbios 6,32 está escrito: Quem comete adultério carece de senso, é por sua própria culpa que um homem assim procede.
Eclesisástico 23,33: porque primeiramente ela foi desobediente à lei do Altíssimo, em segundo lugar pecou contra o seu marido, cometendo assim um adultério, dando-se a si filhos de outro homem.
Por fim, a boa lição de Jeremias 23,10: A terra está cheia de adultérios e está em luto esta terra maldita. As pastagens do deserto ressecaram e os homens correm para o mal. É a iniqüidade que lhes dá forças.
Mas a bíblia está recheada de muitas outras lições reprimindo essa moléstia que é o adultério. Acho mesmo que vocês nunca abriram a bíblia em suas casas. Deixe-me ver aqui essa sua bíblia Socorro...”.
Toda vermelha, desconfiada, verdadeiramente tremendo, a mulher fazia de tudo para não entregar o livro, só o oferecendo porque o seminarista estendeu a mão. Ao abri-lo no intuito de verificar as características de uso, pois cada livro mostra por si mesmo quando está sendo usado, o seminarista abriu numa página que fez cair uma fotografia no chão.
Quando colocaram o olho na cara do homem no retrato começou a maior confusão. “Mas esse retrato é de Alfredo, meu marido. O que ela está fazendo aí na sua bíblia, sua sirigaita safada?”, gritou Antonieta, já partindo pra cima da outra, que imediatamente correu e, aos gritinhos, se trancou no confessionário.
Completamente desesperado, sem saber o que fazer, de repente o seminarista se viu jogando a bíblia na cabeça de Antonieta para aplacar sua fúria. E depois ergueu as mãos para a cruz logo atrás do altar: “Meu Deus, perdoa-me e protegei-me em meio a esse festim de devassas!”.


continua...



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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