TEMPESTADE – 19
Rangel Alves da Costa*
Inácia não pôde fazer nada para salvar a vida de Dona Querência. Quando colocou a lamparina perto do rosto logo percebeu que ali zanzava a morte. O desespero era tanto que ela ficou com a calma maior do mundo. Nesses momentos extremos geralmente a pessoa não sente reação alguma, somente depois, quando a frieza da realidade se assenta, é que o mundo vem abaixo.
Cinco minutos depois a mocinha dava gritos desesperados, soltando verdadeiros uivos de lobas nas montanhas tristes. O problema é que ela podia berrar com a força que tivesse, se rasgar todinha que ninguém ouviria nada, mas nada mesmo. O mundo lá fora era outro mundo, sem ninguém, sem testemunha, sem qualquer pessoa que atinasse pra qualquer lamentação.
Somente o maluquinho Teté poderia ouvir e correr para perguntar o que tinha acontecido, mas este estava resolvendo outros problemas, quase da mesma monta, se não piores, pois envolviam riscos de mortes. Aliás, o maluquinho se virava como podia para ajudar nos sinistros que se acumulavam. Verdade é que se não fosse ele tudo seria pior. Contudo, como ele dizia que aquela fúria estava ocorrendo porque ele queria, então não se sabe ao certo o mérito dele até agora.
Mas sem ninguém que chegasse à porta para ajudar, Inácia pensou em fazer um monte de coisas ao mesmo tempo. Queria sair correndo pela rua avisando às pessoas, queria telefonar para o hospital, queria a todo custo ir até a escola buscar Betinho. Não conseguiria nada disso, principalmente dar qualquer telefonema, pois os telefones estavam completamente emudecidos. Resolveu então encobrir a defunta e ficar pensando no que fazer.
Inácia não sabia, mas naquele mesmo instante os espíritos pranteavam a velha Otília, aquela mesma tida como verdadeira bruxa, pois chegada às feitiçarias, leitura de mão ali mesmo na tenda cigana ou a domicílio, a prometer vidências. E se metia ainda a remexer paneladas de ervas e poções mágicas, no mesmo feitio de bruxa medieval, a fazer serviços para separar casais, reatar namoros, broxar homem casado safado, garantir emprego pra uns e desemprego pra outros, enriquecimento de uma hora pra outra, magia negra e magia branca, tudo de magia.
Diziam que ela tinha o poder de fazer a pessoa murchar, definhar de vez e para sempre só com um olhar. Mas só fazia isso por uma grande justificativa e por muito dinheiro, mas muito dinheiro mesmo. Talvez nunca tivesse feito um trabalho desses, pois era pobre de comer mamão verde cozido na água e sal. Diziam também que já tinha sido mulher de posses, porém gastou muito dinheiro investindo em propaganda enganosa, pagando a um e a outro para andar espalhando mentiras sobre os seus poderes.
Na verdade, de encantamento, de feitiçaria e magia, madame Otília, como gostava de ser chamada, não entendia de nada. Vontade não faltava, pois sentia que tinha um dom espiritual apropriado para esses trabalhos. Porém, ainda que tivesse um baú repleto de livros da capa preta, de magias e transformações, de feitiçarias da Madame Vivù e principalmente o Grande Livro Templário Das Grandes Magias de Perdição e Salvação, escrito no século IV por um tal Oriecitief Roiam, a pobre da mulher alcançou o envelhecimento sem ter aprendido nada.
A bem da verdade, não se pode dizer que não foi uma cultuadora das magias, enfeitiçamentos e encantamentos. Exerceu tal ofício e muito, o que se quer deixar claro é que seus trabalhos nunca deram nenhum resultado desejado. E se deram foi exatamente ao contrário do pretendido. Muitas vezes teve de passar muitos dias corrida com medo das mulheres casadas que perderam seus amantes, das ciumentas cujos maridos passaram a broxar somente para elas e não para as amantes, das apaixonadas que perderam de vez seus namorados.
O problema maior, contudo, fora causado por ela consigo mesma. Eis que certo dia, à meia-noite, bateu à sua porta uma rica mulher de uma cidade vizinha para fazer encomenda de um servicinho muito especial. Queria que a grande mestra da feitiçaria preparasse uma garrafada com ervas mágicas para que a própria ficasse tão fogosa, apetitosa e devoradora com seu amante bem mais jovem do que ela, de modo que o rapazinho ficasse completamente extasiado todas as vezes que a possuísse.
Aceita a encomenda, pagou bem pago e marcou o retorno dali a dois dias, no mesmo horário, dando mais do que tempo para que a encomenda fosse preparada com perfeição. Assim, ainda na madrugada a metida a feiticeira começou a catar ervas, raízes, besouros e lagartixas para juntar tudo na panelada, acrescentar outros ingredientes, dizer algumas palavras mágicas e pronto, o rapazinho seria um cativo nas mãos da insaciável e safada mulher.
A partir das características da formosa mulher, fez algumas perguntas na vizinhança e ficou sabendo que era a esposa do mandatário maior, o prefeito, da cidade vizinha. Porém, não tomou isso como nenhuma surpresa. Aquele não seria nem o primeiro nem o último caso, disso tinha certeza. A fama daquelas ricaças corria solta. Famosas por cima e verdadeiras marafonas por baixo e nas alcovas.
Mas o problema começou a surgir quando a eterna aprendiz de feitiçaria colocou o caldeirão no fogo de lenha e, pouco a pouco, foi juntando ervas, besouros, rabo de lagartixa e tudo o mais que naquela receita cabia. Cada ingrediente que era adicionado era também acompanhado por algumas palavras somente conhecidas por ela e depois colocado um pouco do caldo na palma da mão e saboreado.
Contudo, a cada experimentação saboreava duas, três, até quatro vezes. E logicamente, com a mistura já podendo surtir efeito, quanto mais a mulher ia provando mais ia sentindo um fogo diferente subindo-lhe pelas partes de baixo e tomando todo o corpo. Sentindo uma sensação agradavelmente diferente, uma vontade danada das coisas do sexo, acabou colocando numa caneca um pouco daquele caldo e foi sorvendo aos poucos.
Não durou muito e o efeito foi tamanho que ficou completamente nua pela casa ansiando a chegada do marido. Quando o coitado do homem chegou, cansado das durezas do trabalho pesado, e sem saber nada do que estava se passando, quando menos espera se viu atacado pela esposa, numa fúria sexual jamais vista. E foi nesse dia que ela ficou viúva, pois o homem não agüentou tantas exigências e acabou batendo as botas nuzinho da silva, todo suado e alquebrado. Cena triste de se ver, o homem morto, estirado no chão, e a mulher querendo mais sexo de qualquer jeito.
Depois disso numa mais quis experimentar as poções mágicas que fazia. Também ficou sabendo que o prefeito da cidade vizinha havia ficado viúvo, vez que sua digníssima esposa fora encontrada misteriosamente morta, completamente nua dentro de um estábulo. Jurou numa mais fazer aquela garrafada, e realmente cumpriu o prometido. A única coisa que havia dado certo na sua feitiçaria também tinha causado tanto mal. E continuou apenas como uma feiticeira desacreditada, uma bruxa sem poderes, uma vidente cega para o futuro.
E agora estava morta, caída nos fundos da casa, lá pelo quintal. Quis fazer magia para que a tempestade se dissipasse e um raio acertou-lhe em cheio enquanto lamentava sua impotência frente às forças da natureza.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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